sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Coincidência do destino...

... ou ironia sutil?


Tinha 19 anos. Fui a um seminário em Chicago sobre depressão. Consegui errar tudo: cheguei um dia e uma hora atrasada para a primeira aula. Como não apareci, minha inscrição foi cancelada. A atendente da faculdade viu meu desespero e disse que eu poderia me transferir para outro curso, com início naquele dia. O professor era John Ratey, papa do déficit de atenção. - Entrevista com a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, especialista em (e paciente de) Transtorno de Déficit de Atenção.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Primavera de Tegucigalpa

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A História é uma moça tímida, alguém escreveu. Antes da invasão da Polônia e da descoberta do pacto germano-soviético, quem ousava criticar líderes populares (e democraticamente eleitos), como Hitler e Mussolini, que reconstruíam a economia e a auto-estima de países humilhados? Quanto tempo o Ocidente demorou para perceber que a Revolução Cultural não foi um Maio/68 Chinês, mas um expurgo deflagrado por Mao Tse-tung para aumentar seu poder pessoal? Dar sentido aos fatos e discernir os lados em conflito depende da lenta depuração do processo histórico. Só retroativamente a condescendência e a simpatia se mostram criminosas.

Há momentos, entretanto, em que a História se desvela, concentrando suas dimensões de tragédia e de farsa, e a crueza dos fatos permite que sejam interpretados em tempo real. Honduras vive hoje um desses momentos raros, e os acontecimentos trazem em si uma carga simbólica que permite descobrir-lhes o sentido. Manuel Zelaya, o latifundiário conservador que sofreu uma súbita epifania socialista, representa como ninguém a alma do bolivarianismo: essa mistura de marxismo barato e nacionalismo autoritário revela-se a ideologia de uma elite criolla que pretende governar nações como manda em suas fazendas e quartéis. O "golpe" que o depôs não é menos exemplar. Assim como Zelaya e Cháves, Isabelita Péron e Salvador Allende tomaram medidas autoritárias contra as quais as instituições democráticas não tinham defesas. Quando foram depostos, entretanto, seus países levaram décadas para libertar-se de seus libertadores. Em Honduras, ao contrário, os militares despacharam o presidente para o exterior e, ato contínuo, entregaram o poder ao Parlamento, que manteve inalterada a data das eleições. Por fim, talvez vejamos o resgate da democracia hondurenha abortado pela intervenção de um concerto de nações estrangeiras, enquanto possíveis aliados (como os Estados Unidos e a União Européia) estão ocupados demais com seus próprios problemas para posicionar-se como deveriam. A trama é tão cristalina que, se um ficcionista a escrevesse, seria acusado de simplismo.

Esses momentos em que a dinâmica da História coloca-se em evidência costumam ser também seus pontos de inflexão. Após invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, começou a derrocada da liderança soviética sobre os partidos comunistas do Ocidente, em um processo que culminaria na Glasnost. O massacre da Praça da Paz Celestial selou o destino do maoísmo como alternativa política. As pessoas diretamente envolvidas, entretanto, costumam pagar caro por serem protagonistas da História. O caso hondurenho apontava para um desfecho diferente, com a realização de eleições em novembro e a possibilidade de uma transição relativamente pacífica. Mas o governo brasileiro, ao patrocinar a volta de Zelaya ao país, mostra-se disposto a cobrar do povo de Honduras um preço alto por tentar decidir seu próprio destino.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Um Oriente ao Oriente do Oriente

A tristeza dos trópicos e os trópicos da tristeza.
J'avais cherché une societé réduite à sa plus simple expression. Celle de Nambikwara l'était au point que j'y trouvait seulement des hommes.
(Eu procurava uma sociedade reduzida à sua mais simples expressão. A dos Nambikwara o era a tal ponto que nela eu encontrei apenas homens.)
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"Só o Ocidente produziu multiculturalistas", sentencia a crítica rasa ao relativismo cultural. Apesar da ligeireza do argumento, ele expressa bem algumas contradições. Lévi-Strauss, nos capítulos finais de Tristes Tropiques, resume-as assim:
Em primeiro lugar, há a contradição na condição do etnógrafo (ou do multiculturalista). Superada a idéia roussoniana do "bom selvagem", é preciso reconhecer que sociedades ditas "primitivas" não são livres de conflitos e contradições. Entretanto - sem ingenuidades metafísicas - não há critérios objetivos para julgá-las, pois o observador está preso à sua própria bagagem cultural. A única objetividade possível consiste em tomar como dados os valores da sociedade observada, sem questioná-los. Ou seja: de um lado, o etnógrafo (ou multiculturalista) procura o exotique em razão de uma recusa utópica de sua própria sociedade; de outro, assume em relação às culturas que encontra uma posição intransigentemente conservadora.
Depois há a contradição da própria idéia de tolerância. Usa-se o exemplo do Islã: os maometanos simplesmente não conseguem compreender por que o resto do mundo não se converte a essa religião que, além de ser portadora da Verdade revelada, possui a suprema virtude da tolerância. A posição do Ocidente não é menos ambígua: não nos é dado julgar outras sociedades, mas estamos em vantagem porque sabemos disso. 
Ele sustenta, entretanto, que essas contradições são apenas aparentes. Para começar, não se trata de sermos tolerantes, mas de reconhecermos a franca superioridade de soluções mais antigas (ou "primitivas") para os problemas com os quais a Ocidente ainda se debate. Depois, a abordagem conservadora de outras culturas, com o objetivo de compreendê-las, serve para oferecer à Europa um meio de se reinventar, "en nous rapportant à un temps où notre monde a perdu la chance que lui était offerte de choisir entre ses missions" (levando-nos de volta a um tempo em que nosso mundo perdeu a chande de escolher entre suas missões - p. 471).
Quanto "cansaço da vida" em uma frase! Mas isso não diz respeito a nós, que não somos europeus. O que nos interessa é o problema ético de como conviver com culturas radicalmente diferentes.
A certa altura de sua busca pela etnia Nambikwara, talvez uma das mais primitivas da América do Sul, Lévi-Straus ouve um relato desconcertante. Ao longo da linha Rondom se instalara um grupo de missionários americanos. Um deles dá uma aspirina a um indígena doente, que morre dias depois. Os Nambikwara, pensando tratar-se de envenenamento, matam a pauladas todos os missionários - um casal de adultos, um adolescente e uma criança de colo.
Meia centena de páginas depois, o etnógrafo confraterniza com os homicidas, que disputam alegremente sobre quem desferiu os melhores golpes. O fato é relatado a frio, sem um esboço de reprovação. Somente os missionários são objeto de um julgamento moral: esses puritanos, observa, são criados para crer em um inferno de óleo fervente e labaredas de enxofre, e tendem a ser bastante desumanos (ele parece esquecer que o assassinato não foi causado por uma desumanidade, mas por uma aspirina).
Embora estejam quase tão distantes de um acadêmico francês quanto um Caduveo ou um Bororo, missionários americanos pertencem ao universo ocidental e, portanto, são seres humanos que fazem escolhas. Os Nambikwara, ao contrário, pertencem a uma sociedade exótica, cujos valores nos são inacessíveis. Por isso, Levi-Strauss prefere incluí-los no mundo natural, regido por leis de causalidade e onde não há lugar para julgamentos morais. Então, bem, se alguém é picado por uma cobra, não se deve condenar a maldade do animal, mas a imprudência do homem.
Essa abordagem, que se pretende revolucionária, em nada difere da tradição européia de instrumentalização e desumanização das populações do Novo Mundo. Quem não é objeto de julgamentos tampouco pode ser sujeito de direitos, e tratar as ações de seres humanos em termos de relações causais é roubar-lhes a liberdade de escolha - juntamente com a responsabilidade que a acompanha. Essa mentalidade pode servir para um europeu lidar com as suas próprias contradições, mas não para fundamentar as relações entre culturas diferentes que precisam conviver em uma mesma comunidade política. Nesse caso, única solução viável é reconhecer liberdades e conferir direitos, mas para tanto é preciso aceitar a idéia de que sociedades e culturas se transformam (e, eventualmente, desaparecem) quando os homens fazem escolhas. Se, por causa disso, a Europa ficar sem matéria-prima para as suas revoluções, paciência!

quarta-feira, 4 de março de 2009

Quizera...

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Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
-Fernando Pessoa

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Jean-Paul Sarte, Nelson Rodrigues e os tucanos

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Os dois escritores do título são os maiores casos de genialidade combinada com estultice do Século XX.

Nelson Rosdrigues tinha uma adoração, digamos, rodrigueana pelo presidente Médici. Algo assim como o fetiche que Jorge Amado tinha pelos bigodes de Stálin. Há crônicas em O Reacionário em que o leitor quase chega a ouvir Nelson, com aquele sotaque de Antônio Conselheiro de minissérie da globo, repetir gozoso o nome do presidente: Emílio Garrastazú Médici, Emílio Garrastazú Médici. Um desavisado termina a leitura achando que se trata de um Charles DeGaulle tupiniquim, saído das profundezas do pampa para liderar a resistência bruzindanguense contra o comunismo e plantar rosas (era o Médici que plantava rosas? ou era o Geisel?). E mais: a grande virtude do presidente era ser um homem do povo. Com sua insuperável plasticidade, Nelson pinta-o no vestiário, após uma partida de futebol (eu disse que a coisa era rodrigueana), perguntando ao crioulo lustroso de suor: Como é que perdeste aquele gol?!?! A semelhança com nossos dias impressiona.

Sartre é outro gênio da raça que não tinha medo de dizer bobagens quando o assunto era política. Quem lê O Diabo e o Bom Deus não acredita que, até o fim da vida (e isso foi em 1980) o sujeito continuou estalinista "de colar decalco", como dizia o analista de Bagé. Os comunas não podiam nem ouvir falar em existencialismo, essa frescura pequeno-burguesa, mas Sarte cortejava-os com perseverança de mulher de malandro. Tem até um livrinho, chamado O Existencialismo é um Humanismo, que é a transcrição de uma palestra que o filósofo ministrou para tentar cativar a esquerda francesa. É de sentar e chorar. A simplificação da coisa é tal que poderia muito bem se chamar Existencialismo para Crinanças, mas não adiantou: os comunistas não entenderam e, como costuma acontecer nessas situações, só faltou correrem com ele a pontapés.

Mas isso se explica. A juventude de Sartre foi marcada pelo pré-guerra, em que a ponderação de figuras como Neville Chamberain e Édouard Daladier, que hesitaram em sufocar o nazi-fascismo no nascedouro, acabou levando à Segunda Guerra e ao Holocausto. Churchill dedicou-lhes uma daquelas suas frases definitivas: Aceitaram a desonra para evitar a guerra. Tiveram a desonra e terão a guerra. É daí que vem Mathieu Delarue, o personagem de A Idade da Razão que "perde a vida por delicadeza" ao querer conservar a liberdade à custa de evitar qualquer tipo de engajamento - seja político ou pessoal. A liberdade segundo o existencialismo consiste justamente em engajar-se, o que Sarte acaba confundindo com com escolher um lado e permanecer nele, não importa o que aconteça, como se o militante político fosse um torcedor do Internacional.

Já Nelson Rodrigues teve a vida pessoal marcada pela ditadura varguista. Seu irmão morreu vítima de um assassinato político e sua família acabou reduzida quase à indigência quando o jornal do pai foi fechado - empastelado, como diziam na época - pelo governo. Tornou-se um defensor intransigente da liberdade - "A liberdade é mais importante que o pão" era uma de suas frases obsessivas - o que, paradoxalemente, levou-o à defesa obstinada dos governos militares, mesmo quando censuravam suas peças, simplesmente porque do outro lado estavam os comunistas. É outro que acabou mulher de malandro por excesso de convicção.

Mas o que tem isso a ver com os tucanos, além da parte da estultice? Sartre e Nelson Rodrigues viveram uma época que transformou a ponderação em hesitação, e a hesitação em crime - e não perceberam quando essa época passou. Nós, ao contrário, temos a sorte de viver em um tempo em que o radicalismo parece proscrito da política, e a oposição ao governo Lula em geral, e os tucanos em particular, parecem não perceber que este tempo está se encerrando.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O Novo Bretton Woods

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Sarkozy só tem me dado dissabores, é uma decepção atrás da outra. Aquele seu americanofilismo um tanto caipira - uma caipirice bem francesa, claro, com aquele pli meio blasé - parecia prenunciar, sei lá, um Toqueville rústico. Talvez fosse ele a enterrar de vez os soixant-huitards, o que redimiria seu deslumbramento de petit caporal com a presidência da França e as pernas de Carla Bruni. Honni soit qui mal y pense!

Mas quê! Mal começa a crise econômica e o sujeitinho se revela um gaulista de esporas e penacho: de cara saiu propondo "um novo Bretton Woods" - como se a França já não tivesse sido convidada para o primeiro apenas por cortesia - e a reforma do capitalismo global. Acho que se aplica aos gaulistas o que Borges disse dos peronistas: não são nem bons nem maus, simplemente son incorregibles.

Mas, já que virou moda dizer por aí que a solução para a economia global é desmanchar e fazer de novo, em moldes keynesianos, parto para mais uma batalha na minha guerra infatigável em favor do óbvio.

Para começar, Bretton Woods foi o maior e mais rumoroso desacontecimento do século 20. Em termos institucionais, o acordo baseava-se no seguinte tripé: o Banco Mundial, que depois da reconstrução da Europa passou a financiar metrôs no terceiro mundo; a OMC, que só foi fundada em 1990 e em 2008 está completamente desacreditada; e o FMI que... bem, que dizer do FMI como promotor de políticas keynesianas? Fora isso, instituiu-se o padrão-ouro para o dólar, uma bobagem que atrasou a economia mundial até Nixon jogá-la no lixo e... bem, e anunciaram-se cornucópias de boas intenções, Oh Boy! Oh Boy!, uma prosperidade de longo-prazo jamais vista pela humanidade.

Tenho um ceticismo quase humeano quando se trata de análises econômicas. Os Keynesianos em especial, quando falam do pós-guerra, parecem certos médicos medievais: aplicam ao doente sangrias, laxantes, emplastros imundos e todo tipo de veneno, e quando o sujeito se cura, apesar do tratamento, tomam isso como prova insofismável de sua eficácia. Querem um novo Bretton Woods quando sequer são capazes de demonstrar que o primeiro serviu para alguma coisa.

Mas, supondo que seja possível compreender a dinâmica da crise atual e a daquela de 1929, o que salta aos olhos são as diferenças. Antes os países industrializados, superavitários, vendiam para as economias agrárias, ao mesmo tempo que emprestavam o numerário com que essas transações eram pagas. Bastava uma decisão dos investidores de cortar o crédito para o sistema colapsar. Hoje, bem ao contrário, o(s) déficit(s) da maior economia do mundo, emissora da moeda-padrão global, são sustentados pela compra de títulos americanos por governos do sudeste asiático, em especial a China. Até há pouco tempo temia-se que os chineses - oh! - resolvessem deixar de financiar o déficit americano, ou parassem de produzir os eletrônicos baratos que seguram a inflação em tantos lugares. Antes disso, os americanos decidiram estancar os gastos. É, sim, um problema. Mas, no mundo de hoje, é plausível que falte quem queira fazer políticas deficitárias? Na melhor das hipóteses - para esses keynesianos de meia-pataca - o "Novo Bretton Woods" será um acordo entre China e Estados Unidos, com rubricas ao pé da página de alemães e alguns tigres asiáticos. Ao resto do mundo caberá apenas assistir, atento à oferta de crédito e ao preço das commodities.

Mas nada disso interessa. Sarkozy verbaliza a vontade que tantos líderes nacionais têm de fazer história - quer a História precise deles, quer não. Pode até ser que consigam, que meia-dúzia de presidentes e chanceleres se reúnam em algum lugar para instaurar uma Nova Ordem Mundial - e que, em 50 anos, os livros de história registrem o fato como o nascimento de uma nova era. Mas e economia - e a política - mundiais seguirão adiante, com seus percalços e solavancos. Os cães ladrarão e a caravana passará.

domingo, 26 de outubro de 2008

"Relaxez-vous et profitez-en !"

No Le Monde
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É casada? Tem filhos?

"Sur l'avenue Paulista, l'artère chic de Sao Paulo, les drapeaux rouges portent l'effigie de Marta Suplicy" (Na Avenida Paulista, atréria chic de São Paulo, as bandeiras vermelhas trazem a efífie de Marta Suplicy)

"Il évoque "la confiance" et "la sérénité" de la candidate, mais on sent qu'il n'y croit guère." (Ele [Aldo Rebelo] evoca a confiança e a serenidade da candidata, mas percebe-se que não leva muita fé]

Tem até Kassabinho...

sábado, 4 de outubro de 2008

Le Sacrifice

Une Histoire Surrèaliste
Stella Artois
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quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O FEBEAPÁ e o Desmatamento

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Duas notinhas.

FEBEAPÁ 3

Encontrei no brique, a dois por cinco, quase todos os livros de Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, criador do celebérrimo FEBEAPÁ (Fesival de Bestairas que Assola o País), edições 1 e 2. Era o tempo da Redentora, e o que mais se via era delegado de polícia, secretário de segurança e comandante militar "baixando" fulminantes portarias, num furor regulamentatório de tudo o que não lhes dizia respeito. E assim ficavam devidamente disciplinados por ato administrativo o comprimento da saia das moças, o horário de namoro nas praças públicas, a quantidade de beijos permitidos por sessão cinematográfica e outros assuntos de premente interesse público. Não me acreditam? Vão lá ver, no livro do Lalau.

E eu, lendo tudo aquilo, pensava em como andam mansas as autoridades policiais de hoje em dia, que - muito sensatamente - deixam as portarias para os porteiros. Mas minhas divagações recaíram então sobre este outro Poder (pudêrrr) da República, o Judiciário, cujas autoridades (otôridades) andam por aí a regulamentar furiosamente, com o maior descaro que já se viu. Merecíamos um FEBEAPÁ da justiça, dando especial ênfase ao TSE, aos TREs e aos Juizados da Infância e Adolescência. Um pesquisador diligente há de encontrar até portaria em verso.

O Desmatamento

Está em todos os jornais: o INCRA é o maior desmatador do Brasil. A direção do órgão, com os brios eriçadíssimos, redargüiu: o maior, não! A FUNAI desmata mais! E é de dar dó o basbaque da turma dos amanhãs sorridentes: então os povos indígenas desmatam? então os homens e mulheres camponeses e camponesas desmatam?

Como de costume, o que merece espanto aqui é o espanto mesmo. Nossos politicamente corretos jamais concederão que os oprimidos de manual possam ter interesses conflitantes. Em todo o mundo civilizado, discutem-se a sério a escolha entre preservação ambiental e produção de alimentos, por exemplo. Aqui, somos maniqueístas: "camponeses" e bons selvagens produzem comida e crescimento econômico preservando o meio-ambiente; grandes latifundiários só criam "desertos verdes" e só alimentam a voracidade do capital estrangeiro. E fim de conversa. O relatório do IBAMA sobre o desmatamento nos dá uma pista de onde vai nos levar esse raciocínio pueril.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

L'État c'êmu nóis!

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ou A Bruzandaga Vermelha II

Nada define melhor o espírito do absolutismo que aquela frase dita por Colbert a Luís XIV (cito de cabeça): "As manufaturas são os canhões de Vossa Majestade, e os comerciantes, suas divisões." Eram comerciantes ou artesãos? Já existiam divisões naquela época? Não importa. O que interessa aqui é o seguinte: em um regime liberal-burguês (hshshsh), a economia de mercado é um fim em si mesma; no modelo absolutista, está a serviço de finalidades que lhe são estranhas.

Me explico: para um liberal da velha cepa, a livre iniciativa possui uma dimensão axiológica que se sobrepõe a seu aspecto, digamos, instrumental. Me explico melhor: o que importa é que cada um tenha o direito de produzir riqueza livremente, de ser proprietário dos frutos de seu trabalho e de utilizar-se deles para buscar a felicidade como entender melhor, sem interferência estatal. O fato de que uma economia organizada em torno desses princípios produz riqueza de forma mais eficiente é meramente incidental.

A lógica colbertista inverte a equação: aceita-se o regime de livre-iniciativa apenas porque produz mais riqueza; e essa riqueza não se destina ao bem-estar material dos indivídios, serve para financiar a persecução de objetivos políticos - o que, quase sempre, envolve guerras, que são coisas caras. Eis algo que se sabe desde o surgimento do capitalismo: uma economia liberal pode perfeitamente servir a finalidades não-liberais.

Certo marxismo pedestre (ou eqüestre) entende o socialismo como um projeto estritamente econômico - o que não é possível sem que se ignore seus antecedêntes históricos (jacobinismo, babovismo, blanquismo) e filosóficos (Hegel). A maioria dos ditos "neoliberais" propõe, de forma igualmente bovina, que se retire do liberalismo sua dimensão política. Estes aliam-se alegres a ditadores como Pinochet; aqueles, ruminam tristemente sua estupefação com o fenômeno chinês.

A China, aliás, é o exemplo manualesco disso de que estou falando. Mas vamos a um caso mais próximo (a partir daqui, este texto explica o anterior). Se José Dircei foi o Richelieu da Bruzundanga, é natural que Pallocci seja o Colbert de Ribeirão Preto. A tão incensada conversão do PT à economia de mercado, à responsabilidade fiscal e ao bom senso só pode ser compreendida se tivermos em mente que o partido veicula um projeto essencialmente político - e apenas conjunturalmente econômico. Os idiotas da objetividade rodrigueanos perguntarão: se tal projeto não contempla necessariamente uma economia planificada, consiste então em que? Os emprestimos do BNDES ao Equador e a esculhambação institucional de que falei abaixo podem dar uma idéia, mas não sejamos nós idiotas da objetividade. Afinal, por acaso é novidade um programa político utopista transformar-se em projeto de poder cínico, envolto em palavras de ordem vazias de significado?






quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Mais-valia de Estado

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Não, não me espanta que o Equador esteja dando calote no BNDES. O que me espanta é que o BNDES tenha emprestado ao Equador! Na verdade, como de costume, o que me espanta mais é que não haja espanto.

Vamos lá, ao óbvio: qualquer marxista de botequim conhece a conversa da mais-valia; posto que todo o valor é conferido pelo trabalho, a diferença entre o que se paga ao trabalhador e o valor que se agrega à mercadoria é expropriação, é roubo e nada menos. Assim, há hordas de esquerdistas prontos a vociferar contra a exploração dos trabalhadores feita pelos proprietários que - absurdo! - lucram.

O que ninguém estranha, o que não merece um suspiro de espanto, um sussurro de indignação -- é que o Estado tome parte do salário de todos os trabalhadores para repassá-la ao empresariado. Sim, é exatamente isso que se faz com o FGTS: essa poupança forçada serve, entre outras coisas, para que o BNDES empreste a juros subsidiados à Odebrecht. Emprestar a juros inferiores aos de mercado não é senão fazer uma doação velada.

No caso do Equador, junta-se à generosidade com as grandes empresas nacionais o imperialismo condescendente do governo com relação aos "irmãos menores" (o termo é de Lula) da América Latina -- desde que tenham eleito governos esquerdistas, claro. Ou seja, a poupancinha (forçada) do assalariado brasileiro financia não só as grandes empreiteiras nacionais, mas também as veleidades expansionistas do Grande Timoneiro.

E ninguém se queixa.

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Então Lula, o Contemporizador da América, diz na televisão que vai dar um telefonema ao Rafael e resolver isso, "como os dirigentes civilizados fazerm". Não, não é assim que fazem dirigentes civilizados! Assim fazem caciques, rufiões e tiranetes de repúblicas bananeiras. Dirigentes civilizados resolvem crises através das leis e instituições, não em conversas ao pé do ouvido.

Os 240 milhões não são nada perto do de aviltamento das instituições promovido pelo Lulismo e assemelhados. Estão fundando, na América do Sul, a URETACO - União das Repúbicas do Tapinha nas Costas.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Kadhafi, um liberal.

Não há o que não haja.

Segundo esta reportagem do Le Monde e esta do Libération, o Guia da Revolução na Líbia virou de repente um leibertário. Kadhafi cansou de ouvir reclamações sobre a ineficiência e corrupção de seus ministérios, então resolveu mandar fechar o governo: «Vous accusez à chaque fois les comités populaires [ministères, ndlr] de corruption et de mauvaise gestion. Nous n’allons pas en finir avec ces plaintes. Donc que chacun ait sa part dans sa poche et qu’il se débrouille.» (Libération) Isso mesmo: o orçamento dos ministérios (lá, eles chamam de "comitês populares" - a/c PT/Poa) será repassado diretamente à população, e que cada um dê jeito de cuidar da própria educação, saúde, etc. "L'argent que nous mettons dans le budget de l'éducation, je dis laissons les Libyens le prendre. Mettez-le dans vos poches et éduquez vos enfants comme vous voulez, prenez-en la responsabilité !" (Le Monde)


Ainda não consegui decidir se isso é a versão Líbia do bolsa-família, o liberalismo possível em um país que vive só de Petróleo ou simplesmente um delírio populista.

Como disse Robert Fields: Para todo problema complexo há uma solução simples - e errada.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Símbolos I

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Predestinação, Super-Homem e Revolução Cultural

"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas." - Borges, A Esfera de Pascal.

"History is the record of what human beings have been impelled to do by their ignorance and the enormous bumptiousness that makes them canonize their ignorance as political or religious dogma." - Huxley, Island. [A História é o registro do que os seres humanos foram impelidos a fazer por sua ignorância e da enorme teimosia que os faz canonizar essa ignorância em dogmas religiosos ou políticoas]

Huxley expõe, em Island, uma tese verdadeira e original (raramente vemos as duas coisas juntas): estabelece uma relação entre a doutrina da predestinação e chicotadas no traseiro, entremeadas por calvinismo, nazismo e maoísmo.

Explicitemos o que o Dr. McPhail, o improvável personagem do romance - médico de nome escocês nascido em um paraíso-na-terra do pacífico sul, homem de meia-idade adepto do sexo tântrico e do chá de cogumelos -- deixa apenas entrever:

Segundo a doutrina de Sto. Agostinho, revivida por Lutero e Calvino, o Todo-Poderoso é - e não poderia deixar de ser -- perfeitamente indiferente às nossas boas ações. Somos irremediavelmente corrompidos, mas Ele, em sua infinita misericórdia, salvou-nos - bem, pelo menos a alguns de nós. Como saber quem recebeu a graça? Por sinais externos de felicidade (a riqueza e a saúde, p. ex.), querem uns; para outros, mais sutis, pela fé: aquele que tem fé inabalável será salvo, aquele que será salvo tem inabalável fé em sua salvação. Ergo, sei que recebi a graça porque sei que recebi a graça. Quod erat demonstratum.

Essa engenhosa doutrina descreve o mundo como dividido em dois tipos de pessoa: os infalivelmente redimidos e os inexoravelmente corruptos. Então prescreve, muito razoavelmente, que os primeiros têm o dever moral de fustigar as nádegas dos últimos.

Agora, por que pensar a salvação em termos de indivíduos? E por que não substituir a deidade por alguma abstração mais ao gosto do tempo - digamos, a História? Assim, temos que a graça pode ungir um governante (Hegel e Voltaire, hehe), uma raça (Hitler), uma classe (Marx), uma vanguarda (Lênin) ou uma geração (O Mao da revolução cultural). Será apenas coincidência que todas essas predestinações têm sua origem remota para lá do Reno?

Mas o que todos esses ateus podem ter em comum com Calvino, Lutero e Sto. Agostinho? A inversão dos termos do julgamento moral típico (ou, segundo Nietzche, profundamente atípico): se eu normalmente diria que sou um homem bom porque faço o Bem, nossos reformadores sabem perfeitamente que, na verdade, faço coisas boas porque sou no fundo um bom sujeito. Daí a concluir que, já que sou assim tão bom, defino por minhas ações o Bem e o Mal -- e não posso ser julgado senão por meus próprios padrões -- é um pulo.

E as chicotadas no traseiro fecham o ciclo. Quem apanhou muito na infância tem duas saídas: ou o sujeito acreditará que a verdadeira liberdade consiste em obedecer a um pai abstrato brandindo eternamente um relho ameaçador (Hegel); ou então, como um adolescente metafísico, estabelecerá como dogma moral que, não importa o que aconteceça, estará sempre com a razão (Marx). Em qualquer caso, sentir-se-á impelido a a submeter as nadegas alheias àquilo que foi infligido às suas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um Oriente ao Oriente do Oriente

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ou Sobre Camelos e Mangabas
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Mangabeira Unger. Passei os olhos sobre algumas coisas que o sujeito escreveu. Sua tese central é a da sociedade como artefato: pretensa síntese dialética de marxismo e liberalismo, procura desvencilhar-se do determinismo do primeiro sem recair na ingenuidade contratualista do segundo; a sociedade pode ser construída como quisermos, sim, mas não podemos esquecer as estruturas... Subjacente a esse quase existencialismo político, há a crença na força telúrica do nosso ziriguidum e da nossa malemolência, que nos conferem o destino histórico de curar a neurastenia do ocidente - gostemos ou não.

A relativa ascenção política do mangabeirismo - que tem por avatares Ciro Gomes, aquele da nova hegemonia, e talvez o juiz DeSanctis - andava me preocupando bastante. O qualunquismo lulista é quase inóquo, mas essa auto-orientalização me parecia menos inofensiva: povos e nações que se crêem portadores do destino da humanidade costumam embarcar em aventuras desastrosas (sim, me refiro à Alemanha); quando essa crença não passa da concretização de anseios estrangeiros, pior ainda.

Borges dirimiu meus temores. Em uma conferência sobre a relação entre poesia gaúcha e poesia gauchesca, o argentino menciona um fato transcedental: não há camelos no alcorão. Inserido na realidade dos desertos do levante, Maomé não precisa retratá-la; o que há nela de pitoresco e definidor - os camelos - é para ele banal, cotidiano, indigno de nota. Não precisa esforçar-se para ser árabe porque é árabe.

Acho que a invenção da brasilidade remonta à Era Vargas. Quando o país iniciou sua transformação em uma sociedade industrial, passamos a não mais incorporar as tradições nacionais e regionais como as plantas dão frutos, com naturalidade e inconsciência. No exato instante em que começamos a desejar ser brasileiros, deixamos de sê-lo.

O próprio Mangabeira Unger é como que um símbolo disso. Árvore nativa por parte de mãe, anglo-saxão por parte de pai, seu nome já denota a condição de apátrida. Sendo americano sem perceber (e, por isso mesmo, de forma autêntica), esforça-se para criar uma identidade a partir da personificação de uma nacionalidade e de uma cultura; mas só consegue fazê-lo com aquele sotaque carregado, porque só viveu a brasilidade como representação mítica do estrangeiro, do exotique.

Nosso mangabeirismo - em sentido amplo, de afirmação de uma nacionalidade perdida - não deve, portanto, causar espécie. A profusão de mulatas mulatíssimas e seminuas, de índios pintados para a guerra, de samba e futebol, essa celebração do exotismo em todas as nossas manifestações culturais - tudo isso não passa de uma tentativa de reviver como farsa o que foi nossa brasilidade trágica.

terça-feira, 29 de julho de 2008

O Liberalismo do Dr. Pangloss

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According to Osborne, the economic manifestation of the classical notion of beauty is the depiction of long-run equilibrium in the model of perfect competition: ‘it is a representation of perfection - of the one outcome where the price asked for and received by sellers is equivalent to both their average and marginal cost’ (p. 5). This outcome is synonymous with Paretian efficiency, where the movement from the perfectly competitively equilibrium state of allocation to another cannot make at least one individual better off without making others worse off. As Osborne puts it, ‘within the realm of trading … perfectly competitive equilibrium is the highest achievement. It is, in other words, beautiful’*

« Il est démontré, disait-il, que les choses ne peuvent être autrement : car, tout étant fait pour une fin, tout est nécessairement pour la meilleure fin. Remarquez bien que les nez ont été faits pour porter des lunettes, aussi avons-nous des lunettes. Les jambes sont visiblement instituées pour être chaussées, et nous avons des chausses. Les pierres ont été formées pour être taillées, et pour en faire des châteaux, aussi monseigneur a un très beau château ; le plus grand baron de la province doit être le mieux logé ; et, les cochons étant faits pour être mangés, nous mangeons du porc toute l'année : par conséquent, ceux qui ont avancé que tout est bien ont dit une sottise ; il fallait dire que tout est au mieux. »**


A primeira das citações acima vem do mesmo blog mencionado no post abaixo; a segunda, do primeiro capítulo do Cândido, de Voltaire. Ambos vêm a propósito de uma discussão sobre "o apelo romântico do capitalismo". Eis um tema que sempre despertou meu interesse: como e por que o pensamento marxista e pós-marxista obteve o monopólio do humanismo utópico, do idealismo romântico, dos bons sentimentos e do politicamente correto em geral? Quando é que passou a ser verdadeira aquela frasesinha supostamente espirituosa, segundo a qual quem não é de esquerda aos 20 anos não tem coração, e quem não é de direita aos 40 não tem cérebro?

Caberia uma explicação histórica. Na Praga da década de 1960, certamente não era pelos membros do PC que as meninas de mini-saia suspiravam. O apelo romântico da esquerda vem do mito da resistência, da contestação, da contracultura. No âmbito da guerra fria, nada mais natural que a "subversão" interna assumir o discurso do inimigo externo - com a conveniência adicional de que o ocidente desconhecia o que se passava por trás da "cortina de ferro", de modo que o socialismo real dos golas-rolês era quase todo ilusões. Claro que, após a queda do muro, viu-se que só havia insurgentes de boulevard onde podia haver insurgentes: nas democracias ocidentais. Mas, no fim, as virtudes polimórficas conferidas à esquerda pelos soixant-huitards limparam a ficha do marxismo, dissociando-o dos crimes do stalinismo quando já não se podia mais negá-los.

Mas essa não é toda a história. Explica por que a esquerda tem seu charme, não por que a direita é anódina. Acredito que isso se deve ao fato de que o liberalismo, a partir de certo momento, deu a disputa por vencida e assumiu um discurso de tom conservador. Nada mais absurdo: o Século XX viu o retorno triunfal do obscurantismo; a América Latina em especial, com raras e tímidas exceções - nenhuma na Bruzundanga - foi sempre governada pelas inefáveis aristocracias crioulas, trocando apenas de cor. As vitórias do liberalismo foram efêmeras e localizadas.

Reparem nos dois trechos acima, vejam o que têm em comum a fala de um economista em plena fruição estética de seu modelo teórico e a filosofia do Dr. Pangloss: o hermetismo da argumentação, declaradamente inacessível a não-iniciados; o distanciamento da realidade concreta e do senso comum; o deslumbramento com as próprias conclusões, que são um misto de verificação e imaginação. Dizer que "a manifestação econômica da noção clássica de beleza é a representação do equilibrio de longo prazo no modelo de competição perfeita" é o mesmo que maravilhar-se com o fato de que temos narizes para sustentar aos óculos.

Mas o mais curioso de tudo é que, no século XX, quem melhor representa o obscurantismo, o discurso escolástico e bizantino, é o marxismo. O liberalismo, ao contrário, baseia-se em um paradigma bem mais, digamos, nominalista - e, portanto, mais acessível ao homem comum. Afinal, o que é mais fácil explicar: a lei da oferta e procura ou a mais-valia? a divisão do trabalho ou a sua alienação? a auto-regulação dos preços ou a revolução proletária, que é ao mesmo tempo uma escolha e um destino histórico? Não que a economia seja algo simples, nada disso. Mas seus fundamentos - o tomador de decisões racional, a lei de oferta e procura, a escassez - fazem parte da experiência diária de todo ser humano , e decorrem de uma forma de pensar absolutamente intuitiva (na minha opinião pessoal, é aí que está sua beleza).

No entanto, a simplicidade revolucionária do liberalismo adotou um discurso intrincado, com aquele tom de acadêmica indiferença, ao passo que a esquerda aproveita-se toda a nossa pletora de preconceitos irracionais para tornar palatável um pensamento que beira o misticismo. Resultado: o irracional parece auto-evidente e justo; o que é racional só encontra expressão em um discurso hermético, incompreensível para a maioria das pessoas, desinteressante para quase todas.

A razão e o bom senso têm, sim, seu apelo romântico. Basta apresentá-los como tais.


*De acordo com Osborne, a manifestação econômica da noção clássica de beleza é a representação do equilíbrio de longo prazo do modelo de competição perfeita: 'é a representação da perfeição - do único resultado em que o preço pedido e recebido pelos vendedores é equivalente a seus custos médio e marginal'. Esse resultado é sinônimo de eficiência paretiana, onde o movimento do estado de alocação de equilíbrio perfeitamente competitivo para outro não pode melhorar a situação de um indivíduo sem piorar a de outros. Como coloca Osborne, 'no âmbito do comércio... equilíbrio perfeitamente competitivo é a mais alta conquista. É, em outras palavras, belo.

**Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra forma: pois, tudo tendo sido feito para um fim, tudo foi feito necessariamente para o melhor fim. Reparai bem que os narizes foram feitos para usar óculos, assim, nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para serem calçadas, e nos temos sapatos. As pedras foram formadas para serem talhadas, e para delas fazerem-se castelos, assim, o monsenhor tem um belíssimo castelo; o maior barão da província deve ter a melhor morada; e, os leitões tendo sido feitos para serem comidos, nós comemos carne de porco todo o ano: por conseqüência, aqueles que afirmaram que tudo está bem disseream uma tolice; deveriam ter dito que tudo está o mellhor possível.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Funcionalismo e Luta de Classes

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Este post neste blog - o qual, de resto, acho bem interessante - cita o seguinte trecho de uma entrevista com Tom Stoppard: "Isso [a expansão da ingerência estatal na vida das pessoas] interessa às hordas de funcionários públicos que não existiam há 10 anos". O blog em questão é uma publicação de orienação francamente liberal. Entretanto - inadvertidamente, eu suponho - o post brinda os leitores com uma pérola do marxismo de botequim*: o Estado incha e a burocracia aumenta porque isso interessa às hostes de amanuenses que não querem perder a sinecura. O leitor objeta que nunca ouviu isso de um membro da festiva babando pileque? Pois ouviu sim: o sujeito dizia que os capitalistas defendem o livre mercado porque isso aumenta os lucros - o que é a mesma coisa, só que virada do avesso.

Mas não se trata apenas de um ato falho do articulista ou do entrevistado. Essa idéia está cada vez mais em voga no pensamento econômico. Passo a explicar por que isso é uma besteira, do ponto de vista de um funcionário público federal.

O primeiro problema desse raciocínio é sua inadequação aos fatos. Para o capitalista dotado de escrúpulos escassos e contatos abundantes, não há fonte de lucros melhor que um governo que proteja-o da competição, além de oferecer-lhe crédito barato e demanda abundante. Da mesma forma, para o funcionário bem estabelecido convém uma burocracia enxuta e altamente qualificada, que poderá pagar-lhe um salário mais alto - o inchaço do Estado só interessa ao candidato a burocrata, que não vota nas eleições sindicais.

Esse equívoco advém de outro mais profundo: a crença de que interesses de classe e interesses individuais se confundem. Trata-se de um dos fundamentos do marxismo que acabou penetrando no senso comum, transfigurado naquele cinismo de mesa-de-bar que pergunda sempre a quem interessa uma determinada proposição antes de avaliá-la em si mesma. Do lado dos liberais, circula a idéia - na minha opinião, análoga - de que a democracia não passa de uma disputa de interesses entre grupos de pressão organizados.

Classes, na minha ontologia, não existem. Ou os interesses da classe trabalhadora são os mesmos do conjunto dos trabalhadores, ou são apenas as veleidades de meia-dúzia de intelectuais vanguardistas. Da mesma forma, ou o inchaço do Estado interessa, de fato, aos funcionários - o que não é o caso - ou estes estão defendendo como interesse de classe alguma outra agenda. Uma rápida olhada na estrutura dos sindicatos e uma escutadela nas conversas de cafezinho de qualquer repartição demonstrarão que o que é tido como o pensamento da média dos servidores não passa, na verdade, da opinião de uma minoria barulhenta, inserida em uma estrutura aparelhada pela esquerda radical. Claro, não há contínuo que, mesmo levando uma vida de rentista, não ache que o seu salário é baixo e a sua repartição precisa de mais gente. Esse sujeito pode até ser arrebanhado para uma greve de cunho político-partidário, mas está a léguas de distância de concordar com as opiniões do sindicato sobre o tamanho do Estado - basta perguntar-lhe o que pensa sobre a carga tributária para constatá-lo.

Além disso, quando há uma certa distância (lógica ou temporal) entre uma escolha e seus resultados - como ocorre com a maioria das posições políticas - a interferência de outros fatores acaba impedindo que a escolha seja, ao mesmo tempo, racional e auto-interessada. Nesses casos, influenciam mais paixões, valores e preconceitos que interesses verdadeiros. O força propulsora da interferência estatal na vida privada não são as "hostes de funcionários públicos" interessadas em manter os empregos, mas a multidão de qualunquistas sempre disposta a dar seu voto ao primeiro político que prometa "fazer alguma coisa" para resolver o que quer que seja.

*De acordo com Osborne, a manifestação econômica da noção clássica de beleza é a representação do equilíbrio de longo prazo do modelo de competição perfeita: 'é a representação da perfeição - do único resultado em que o preço pedido e recebido pelos vendedores é equivalente a seus custos médio e marginal'. Esse resultado é sinônimo de eficiência paretiana, onde o movimento do estado de alocação de equilíbrio perfeitamente competitivo para outro não pode melhorar a situação de um indivíduo sem piorar a de outros. Como coloca Osborne, 'no âmbito do comércio... equilíbrio perfeitamente competitivo é a mais alta conquista. É, em outras palavras, belo.

**Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra forma: pois, tudo tendo sido feito para um fim, tudo foi feito necessariamente para o melhor fim. Reparai bem que os narizes foram feitos para usar óculos, assim, nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para serem calçadas, e nos temos sapatos. As pedras foram formadas para serem talhadas, e para delas fazerem-se castelos, assim, o monsenhor tem um belíssimo castelo; o maior barão da província deve ter a melhor morada; e, os leitões tendo sido feitos para serem comidos, nós comemos carne de porco todo o ano: por conseqüência, aqueles que afirmaram que tudo está bem disseream uma tolice; deveriam ter dito que tudo está o mellhor possível.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Novamente a Justiça e o MP

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A prisão de Daniel Dantas traz à luz mais algumas vicissitudes dos nossos togados:

1- O Ministério Público e a Polícia Federal parecem exercer fascínio sobre aqueles sujeitos que, cheios de certezas, acreditam poder mudar o mundo sozinhos - desde que imbuídos da devida autoridade. São os cargos de promotor e delegado que, mais que a magistratura, atraem nossos bacharéis aspirantes a paladinos da justiça. O caso do delegado Queiroz é emblemático, quase tanto quanto o do famigerado procurador Luiz Francisco (lembram?). O poder e a independência característicos desses órgãos - maiores que os do Judiciário, que não age de ofício - parecem ser um chamariz para loucos de todo gênero.

2- Esse negócio de Lei é mais sutil que parece, vejam vocês. Agora estão acusando Gilmar Mendes de estar corrompido - com base apenas no conteúdo de seus julgamentos e nas conversas gravadas de um notório atochador, que dizia ter na palma da mão o STJ, o STF, o Banco Mundial, o FED e as Potências Divinas. E sabem o que é pior? Pode ser verdade - quanto aos tribunais, pelo menos. Em Atenas, os julgamentos eram feitos pelo conselho dos 500* - porque, afinal, corromper 251 juízes não era coisa fácil naquela época. Entre os modernos, por uma questão de economia de escala, decidiu-se assim: o conjunto da sociedade faz as leis; os juízes (sozinhos ou em colegiados) as aplicam. Essa cisão entre os órgãos que definem as regras abstratas e os que decidem os casos concretos é essencial para a democracia e o Estado de Direito. Vocês conseguem imaginar bandidos subornando Deputados por uma lei penal mais branda? Ou comprando Ministros para que editem súmulas aumentando a abrangência do Habeas Corpus? Ninguém tem esse poder de antecipação. Da mesma forma, se os Juízes apenas obedecessem às Leis, uma decisão favorável a Dantas seria tão óbvia e previsível que o suborno seria contraproducente, ou tão absurda que ele seria impraticável.


* Errata: o conselho dos 500 era um órgão legislativo, os júris é que eram compostos por 501 cidadãos.

domingo, 6 de julho de 2008

O TSE e a Ditadura dos Virtuosos

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Já falei sobre o assunto no post abaixo, mas a última do TSE impõe que volte a abordá-lo.

Parece que a única instituição brasileira que ainda goza de algum prestígio junto à população é o Poder Judiciário (para efeitos práticos, o Ministério Público entra aqui como Judiciário). Não é difícil entender por quê. Diante do Congresso Nacional, até a comunidade residente no Presídio Central serve como exemplo de integridade. Além disso, há na política uma série de incentivos à canalhice (começando pela necessidade de financiar campanhas, terminando na possibilidade de dispor de verbas e cargos). Como ingressa-se na magistratura via concurso público, é natural que seus membros sejam um quadro representativo da moralidade média da população - o que os faz parecer uma assembléia de Capuccinos em comparação com a classe política. Alguns casos de corrupção e outros, mais numerosos, de corporativismo, fazem com que essa definição só seja válida, mesmo, na comparação.

Outro fator que, acredito, contribuiu para a boa reputação da magistratura foi o distanciamento das questões, digamos, mais mundanas da política. Essa postura decorreu em grande medida do fato de os futuros juízes aprenderem, na faculdade de direito, que deveriam ser "a boca servil da lei". Com julgamentos "técnicos", proferidos em linguagem inacessível, aplicava-se a lei a partir de normas de interpretação previamente estabelecidas, de preferência sem juízos de valor. Decisões judiciais sobre questões mais sensíveis e controversas costumavam ser bastante esporádicas, o que contribuia para a percepção de uma magistratura olímpica, impenetrável e distante.

Pois bem: depois da constituição de 1988, a posição segundo a qual os magistrados, que não são eleitos, não devem julgar as leis, começou a parecer conservadora e anti-democrática. Afinal, o Poder Judiciário - por que não? - também precisa ser um agente de transformação social. Ouvi, na faculdade, um juíz dizer, citando um ministro do STJ, que, em uma causa em que houvesse um litigante rico e outro pobre, não havia dúvida: julgava-se em favor do pobre; um outro, desembargador, afirmou, sem constrangimento algum, que alguém "socialmente excluído" simplesmente não podia ir para a cadeia, não importando que crime cometesse.

A questão aqui não é o absurdo das proposições. Houve, claro, manifestações contrárias ao seu conteúdo, mas ninguém disse o óbvio: quem deve decidir isso não é o juiz, mas o legislador eleito - não disseram-no porque, afinal, não é fácil defender nosso corpo legislativo.

De uma posição tímida, daquelas que só ecoam nas universidades, esse salvacionismo judiciário se expandiu na medida em que o Congresso foi perdendo legitimidade. Desses que agora vociferam contra as restrições à internet, quantos não aplaudiram Celso de Mello quando instituiu a fidelidade partidária, que os Deputados e Senadores recusavam-se a aprovar?

Falei em Savonarola para fazer referência a um fato histórico exemplar: cansada da corrupta elite governante, a população de Florença alçou ao poder um homem que era um exemplo de moralidade ascética. Acabaram descobrindo que não há nada pior que ser governado pela Virtude absoluta - e que os virtuosos costumam ser tenazes quando aferram-se ao poder.

O Judiciário foi, talvez, a única instituição que permaneceu imune a todas as ditaduras e golpes de estado da república brasileira. Mesmo os militares não ousaram interferir na independência do órgão ou desrespeitar suas decisões - e há quem diga ter sido essa a razão da "brandura" de nossa ditadura, em comparação com as vizinhas. Quem está pondo a perder esse respeito é o próprio Judiciário. O Legislativo fiscaliza o Executivo, o Executivo sanciona os atos do Legislativo e o Judiciário vigia a ambos, sem ninguém que o limite ou questione. Só é possível que um dos Poderes seja absolutamente soberano e independente, sem necessidade de qualquer respaldo das urnas, se esse poder exercer um auto-limite extremamente rigoroso. Juízes não têm mandato, não estão sujeitos a cassação ou impeachment. Se excederem-se, só poderemos tirá-los de lá pela força.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

DURA LEX

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Há pouco tempo, nosso Ministro da Justiça, Tarso Genro, defendia tolerância zero para quem bebesse e dirigisse, com punições severíssimas. Pois bem: conseguiu o que queria. Mas, sabem como é, tolerância zero não quer dizer que não deva haver nenhuma tolerância, entendem? "É necessário que se tenha uma pequena tolerância para que as pessoas não sejam injustiçadas pelo fato de terem um pequeno teor alcoólico e não terem violado a lei". Então tá.

Não lembro de quem é aquela frase: "Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei." - mas ela expressa bem nosso wolksgeist. Leis draconianas, aplicação leniente: o resultado não é nem rigor, nem frouxidão, mas anomia. Montesquieu nos acuda.

SAVONAROLA

Desde o mensalão, há uma saudável desconfiança do Executivo e do Legislativo. Agora, precisamos aprender que também não se pode confiar no Judiciário. De fato, há, entre os magistrados, uma tendência menor à corrupção - não porque sejam pessoas essencialmente mais íntegras, mas porque não precisam financiar campanhas.

Mas é uma integridade que não responde a ninguém, que não precisa prestar contas. Começaram timidamente, com "interpretações conforme a constituição". Ficaram mais ousados com a fidelidade partidária e, diante dos aplausos, perderam todo o pejo: querem regulamentar a internet, dizem que entrevista é campanha eleitoral e por aí vai. Se alguém ousa criticar, juntam-se em bando para fazer com que toda a "independência do Judiciário" caia sobre a cabeça do pobre-coitado. É o que dá não ler as coisas direito: ninguém lembra que essa independência é contraface da mais estrita obediência à lei - sem malabarismos hermenêuticos. Mas quem levantará a voz para defender as prerrogativas da Câmara e do Senado?

Pois eu prefiro uma democracia corrupta à ditadura da virtude.

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Em tempo: 86% dos moradores de SP e do Rio aprovam a lei seca. O Brasil deve ser o único país onde o número de pessoas que aprova uma lei é maior que o de que a cumpre.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Aborto, Drogas e Saúde Pública

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Um argumento abastardado domina as discussões sobre dois assuntos importantes: descriminalização (não sei de onde tiraram "descriminação") das drogas e legalização do aborto.

Antes o seguinte: de vez em quando me pergunto qual a diferença entre descriminalizar e legalizar. Vocês sabem: em uma sociedade democrática, tudo o que não é proibido é permitido. Assim, tudo o que a lei não proíbe é "legal". E só há duas formas de se proibir uma conduta: ou ela é um crime, ou é uma infração administrativa (como dirigir sem cinto de segurança, por exemplo). Então, descriminalizar implica que o tráfico de drogas continuará ilegal, mas será punível com multa ou cassação de alvará? Não me espantaria se assim fosse, mas acredito que essa é uma daquelas distinções que existem apenas no mundo da retórica, sem a preocupação de guardar qualquer relação com a realidade objetiva. Para uns, o termpo "descriminalizar" é preferível por dar a entender que se trata de uma conduta que foi antes "criminalizada", ou seja, tornada crime por razões sócio-econômicas sem qualquer relação com a moralidade ou imoralidade intrínseca ao ato. Eu tenderia a concordar com esse posicionamento, se ele não presumisse a existência de uma moralidade absoluta ante a qual algum iluminado deva cotejar todo o Código Penal. Outros, que preferem o mais moderno "descriminar", parecem tratar o termo como um justo meio - ou, dependendo de gosto, uma síntese dialética - entre o extremado "legalizar" e o superado "proibir". Os ares de fazedor de neologismos entendido que essa palavrinha empresta ao falante substituem com vantagem qualquer definição de seu significado.

Mas vamos ao argumento: precisamos tratar o problema das drogas como uma questão de saúde pública; precisamos tratar o aborto como uma questão de saúde pública. Minha platitude de hoje é a seguinte: drogas e aborto não são complexos problemas de saúde pública, são simplíssimas questões de liberdade individual. Querem ver?

Das duas, uma: ou o feto é um ser humano vivo, ou o feto não é um ser humano vivo. Não há meio-termo possível entre ser um ser humano vivo e ser outra coisa que não um ser humano vivo. Na primeira hipótese, o direito do feto à vida tem precedência sobre qualquer coisa - seja a saúde, a vontade ou o bem-estar alguém. Na segunda, não há nele - ou nisso - sujeito de direitos, e a livre disposição do próprio corpo, pela gestante, é absoluta.

Com as drogas, a mesma coisa: abstratamente, cada um tem o direito de inserir o que quiser no próprio organismo e deve responder pelas conseqüências. Concretamente, dada a proibição, o usuário é co-autor de todos os demais crimes cometidos pelo tráfico, e deve estar sujeito a uma punição à altura. Porque não se trata de uma questão de desobediência civil: rebelar-se contra a supressão de alguma liberdade fundamental em uma ditadura é, sim, desobediência civil; contrariar uma legislação votada democraticamente que impede a utlização lúdica de meia-dúzia substâncias - ainda que essa restrição não se justifique - isso é apenas crime.

E a saúde pública? Bem, aqui vai outra obviedade, embora esta, por incomum, possa surpreender um pouco: uma vez que a saúde consiste no bem-estar físico e psicológico de alguém, e que dois seres humanos, até onde se sabe, não podem dividir um mesmo organismo ou uma mesma psiquê, não pode existir uma "saúde pública", apenas a saúde particular de cada indivíduo. O que era para ser uma metonímia - a saúde pública não é senão as várias saúdes particulares, tomadas em conjunto - acabou ganhando sentido literal, transformando-se em conceito abstrato e conduzindo a toda a sorte de bobagens.

E a mais perigosa dessas bobagens é a seguinte: se a saúde é um bem público, não um bem privado, sua preservação torna aceitavel todo tipo de interferência na liberdade indivídual. Para preservar a saúde das inúmeras gestantes, o aborto será legalizado e feito gratuitamente pelo SUS - em casos a serem definidos por portaria do Ministério da Saúde. Se as drogas são uma doença, os usuários de drogas devem ser compulsoriamente tratados, e os traficantes, severamente punidos. Fumar causa câncer, então o tabagismo deve ser banido da sociedade - não por meio de uma proibição pura e simples, coisa de reacionários desinformados, mas por meio de medidas que insidiosamente transformem o fumante num pária. O que esses três posicionamentos têm em comum? A eliminação da responsabilidade individual e sua conseqüência inexorável: a supressão da liberdade.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

CSS, Vinculações Constitucionais e o Conselheiro Acácio

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Mais um capítulo em minha luta incansável pelo triunfo do óbvio.

Primeiro o que vem antes: não sou contra a CPMF. Tudo bem: na atual conjuntura, o governo federal não precisa dessa receita, e o nosso sistema de saúde continuará "beirando a perfeição" sem ela. O decantado efeito cascata do imposto, diante da completa irracionalidade do sistema tributário brasileiro, não é coisa que mereça tanta gritaria. A carga tributária tãopouco: um Estado cuja Constituição promete saúde, educação, cultura, lazer e mais um punhado de coisas, tudo de graça, fatalmente consumirá perto de metade da riqueza do país. Ou bem aceitamos que a sociedade não é responsável pela felicidade eterna de cada indivíduo, ou bem aprendemos a gostar de pagar impostos.

Pois bem: e a CSS? A CSS é vinculada. Toda a sua receita irá para um fundo inteiramente destinado à "Saúde" - algo bem em sintonia com o espírito do tempo, isso de oferecer coisas tangíveis a substantivos abstratos. Sou contra o aumento das verbas "da Saúde"? Não particularmente. Sou contra a burrice.

A cantilena governista afirma que o imposto - está garantido - irá todo ele para "a Saúde". A oposição contrapõe que "a Saúde", se vai mal, não é por falta de recursos. Ninguém lembra que a vinculação de um imposto é algo conceitualmente impossível, ou no mínimo irrelevante: dinheiro não tem carimbo, e se, digamos, R$ 10 bilhões do novo imposto forem investidos na "Saúde", isso não impede que outros R$ 10 bilhões de outras fontes deixem de sê-lo, mantendo inalterado o montante. Põe-se de um lado, tira-se de outro, o resultado é o mesmo. Ficou claro, ou eu preciso repetir a tautologia mais uma vez?

Então, esse negócio de imposto vinculado tem um efeito fortemente negativo sobre um fator importantíssimo na economia da política: nosso discernimento agregado. Quanto mais se repete que a CSS irá toda para a saúde, menor fica a capacidade da população de avaliar adequadamente a realidade.

Com as vinculações constitucionais ocorre algo parecido. O Congresso Nacional consegue aprovar uma Emenda Constitucional dotando um percentual do orçamento à Saúde (2/3 dos votos). Depois, passa uma Lei Complementar regulamentando-a (maioria absoluta). Como é que não é capaz de incluir o montante nas Leis Orçamentárias de cada ano (maioria simples)? A resposta é constrangedoramente simples: basta os grupos de pressão insistirem um pouco, e nossos nobres parlamentares aprovarão a vinculação de 20 % do orçamento para A Saúde, 25% para A Educação, 15% para O Saneamento, 20% para A Segurança, 10% para o Meio-Ambiente, 15% para Investimentos e por aí vai. Afinal, quem discorda que cada uma dessas áreas é importantíssima para o Bem-Estar da Nação? Quando se elabora uma norma como a Emenda 29, a única questão posta é a relevância da Saúde. Quando se elabora um orçamento, é preciso confrontar a importância relativa de cada uma dessas áreas com a realidade dos recursos escassos. E cada vez que alguém faz a defesa de uma vinculação constitucional, nos afastamos um pouco mais de aprender a lidar com essa realidade.

A longo prazo, não importa se a Carga Tributária é de 35% ou 38% do PIB, se este cresce a 4,5% ou a 4,7%, se a SELIC fica em 13,5% com viés de alta ou em 13,75% sem viés. A longo prazo, o que interessa é se a sociedade é capaz de avaliar adequadamente a realidade e tomar decisões minimamente racionais. Sim, a longo prazo estaremos todos mortos. Mas, desde o bacharelismo sucupirense, passando pelo tucanês e chegando ao lulismo (esse tucanês para leigos), sempre tentamos transformar a realidade mudando o nome das coisas. Não custa experimentar essa novidade exótica que é o óbvio.

terça-feira, 17 de junho de 2008

ANAC e Daniel Dantas

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Com dois pontos pode-se traçar uma reta. O estrepitoso lobby da primeira-afilhada em favor da GOL e a discreta atuação de Daniel Dantas no conflito das teles têm inúmeros pontos em comum.

1- Nos dois casos, um megaempresário foi prejudicado pela atuação dos petistas em um setor fortemente regulado da economia. Dantas estava para ser alijado do setor de telecomunicações por sua proximidade com os governos anteriores; a GOL, pela proximidade entre o PT de São Paulo e a TAM.

2- Nos dois casos, o dito megaempresário contratou, a peso de ouro, um lobista poderoso: o primeiro-compadre Roberto Texeira (no caso Dantas, também o advogado-com-apelido-de-jogador-de-futebol Kakay, amigo de Dirceu).

3- Nos dois casos, a atuação do lobista semeou a cisânea entre cabeças coroadas do PT. José Direceu passou a defender Dantas, contra Luiz Gushiken; Dilma Roussef passou a defender a GOL, fazendo pressão sobre os contínuos de José Dirceu na ANAC.

4- Nos dois casos, Dirceu, enfraquecido, acabou derrotado. Os fundos de pensão alijaram Dantas da Brasil Telecom no melhor da festa, quando o governo estava prestes a criar a SuperTele - uma empresa privada com o quase monopólio da telefonia no país. A GOL acabou ficando com uma VarigLog sem dívida e com um imenso patrimônio em concessões públicas.

O caso Dantas veio à tona em função de investigações do Ministério Público italiano sobre a Telecom Itália. O da ANAC, porque Denise Abreu não aceitou ser bode expiatório da crise aérea. Nos dois casos, os atingidos culparam a mídia golpista.

Mais detalhes sobre o caso Daniel Dantas aqui.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Cassandra

Reinaldo Azevedo andou lendo este blog.

Eu: "Farão a reestatização, na lei ou no capital."

Ele: "A 'Quarta Via', como o nome sugere, descarta as outras três: o socialismo (nos moldes soviético ou cubano), o capitalismo à americana e a social-democracia de modelo europeu. O que seria a alternativa pressupõe isto mesmo que se está construindo (ou reconstruindo, já que tivemos o geiselismo, né?) no Brasil: o estado disciplina o mercado, mas não por causa da sua força normativa. Ele passa a ser também um jogador."

Eu: "O resultado é que o governo poderá usar nosso dinheiro para agir no mercado sem controles democráticos. E, a depender da conformação do tal fundo, o PT continuará no controle, por procuração, mesmo depois de deixar o govero."

Ele: "Durante o regime militar, toda estatal tinha sempre um coronel no comando ou, ao menos, no conselho executivo — muitas empresas privadas também os contratavam porque isso abria portas no establishment militar-burocrático. Os “coronéis” da hora são os petistas. Eles já se espalham pelas estatais, onde permanecerão por um bom tempo mesmo que o PT venha a perder as eleições, e também já têm assento no conselho de empresas privadas."

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A Crise Política

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Chegou-se a um ponto em que até eu, que custo a surpreender-me com o petismo, já me surpreendo de não me surpreender mais. Ao que tudo indica, a última denúncia do Estadão sobre Dilma Roussef (sem link, amanhã estará em todos os jornais) tem o potencial de decapitar a novíssima presidenciável petista. Dilma fará o caminho inverso de Palocci: terá sobrevivido ao fait divers e cairá por causa affair.

Alguns aspectos da nova crise política chamam a atenção. Em primeiro lugar, Dilma tem sido constantemente vítima do fogo amigo - tanto o "vazador" do dossiê como a nova Roberto Jefferson são amigos de José Dirceu. Isso impossibilita que se fale em qualquer complô da mídia golpista ou das oposições: ambos têm sido pateticamente pautados pelos petistas. Isso se deve, claro, ao fato de dilma ser uma neófita. Mas os efeitos a longo prazo das denúncias recairão sobre o partido.

Há também o significativamente pitoresco: o principal articulador da falcatrua era compadre de Lula, termo que remete a estruturas de poder arcaicas que a republica-do-tapinha-nas-costas petista soube reinventar. Consta que a filha do sujeito saía das reuniões da ANAC vociferando que "papai já está no gabinete do presidente". Isso gera uma sensação paradoxal, ao distoar dos valores históricamente defendidos pelo petismo, ao mesmo tempo que se encaixa perfeitamente nas estruturas típicas do sindicalismo e dos movimentos sociais. É um traço da contradição fundamental do PT. Trata-se de um partido fundado num momento de perplexidade histórica, especialmente no Brasil. Não podia deixar de defender a Democracia e o Estado de Direito, num país que saía de uma ditadura, mas tinha a herança da esquerda pré-89 - com a qual até hoje não sabe o que fazer. E essa esquerda carrega no sangue o compadrio e o privilégio.

Por fim, fica a sensação de que o que falta ao PT não é um candidato viável, mas um político viável. Os próceres do partido não resistem a cinco minutos sob os holofotes, sem que a atenção atraída faça pulular denúncias - da mídia golpista, da oposição reacionária ou do próprio PT.

A Crise dos Alimentos

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Quando comecei este blog, pensei em escrever um texto triunfalista sobre a crise dos alimentos. Triunfalista porque logo saltou-me aos olhos a relação entre o aumento dos preços e as medidas propostas pelo ecologismo em moda, como a limitação preservacionista das áreas plantadas, os biocombustíveis, a proibição dos trangênicos, a agricultura "orgânica", etc. Além disso, há a questão dos subsídios. Na OMC, tradicionalmente, sempre houve uma divisão em dois blocos claros: de um lado, os países - ricos ou remediados - com grande área agriculturável, como Brasil e Estados Unidos*; de outro, os países europeus, onde a agricultura já não faz mais sentido economicamente e sua preservação tem finalidades sócio-culturais, juntamente com países realmente pobres, especialmente africanos, que se beneficavam com a redução dos preços. Porque subsídios são isto: uma estímulo artificial ao aumento da produção, uma pseudo-redução dos custos, que, naturalmente, tende a fazer baixar os preços - e justamente por isso incomoda tanto os produtores.

E eu perguntaria no final: qual será o resultado dessa clivagem na ideologia do politicamente correta? Vaticinaria que a Europa continuaria preservacionista, defendendo a pequena propriedade tradicional, que produz menos, mas com uso mais intenso de mão-de-obra e maior valor agregado; já os países pobres e os exportadores de alimentos uniriam-se exigindo mais comida, e ponto final. Pois bem: como eu disse, pensei em escrever, mas não escrevi. Achei as conclusões evidentes demais. Já devia saber que o triunfo do óbvio jamais pode ser dado como certo, e que a pugna em favor da tautologia não deve cessar nunca.

Eles começaram bem: criticando os biocombustíveis. Era uma crítica fácil, bastava fazer coro ao que Chávez e Fidel vêm dizendo já há alguns anos - pensando em seus lucros com o petróleo, claro, não em uma crise de alimentos que ninguém antevia. Mas era um bom começo, e tinha algo de verdade. Diversamente do que pode ocorrer com o milho, a produção de etanol de cana-de-açúcar, com o conseqüente aumento no preço da cachaça e da rapadura, jamais gerará hordas de famigerados. Mas há um limite intransponível. Pode-se ainda aumentar muito a produção agrícola brasileira com o incremento da técnica, mas, em algum momento, chegaremos a um brete malthusiano: ou alarga-se a área plantada, ou estagna a quantidade produzida - ou, ainda, avança-se mais sobre a amazônia e o cerrado. Hoje, de fato, é burrice dizer que o etanol brasileiro seja uma causa relevante da crise - e o mesmo vale para o americano. Mas imaginem o que ocorrerá se for implementado o projeto de substituição da matriz energética subjacente à idéia de biocombustíveis. Cada ser humano motorizado, consumidor de luz elétrica, de aquecimento e de produtos industriais, precisará extrair da terra cem vezes mais calorias que atualmente.

A segunda bobagem do discurso atual é o que se diz dos subsídios. Extrapola-se para a agricultura um raciocínio cabível na produção industrial: os subsídios atuam como uma forma de dumping, reduzindo os preços e inviabilizando a produção nos países menos desenvolvidos; quando o produto escasseia e os preços sobem, não há estrutura nesses países para aumentar a produção em tempo hábil. Só que a agricultura exige investimentos significativamente menores e instituições mais simples que a indústria, e dá retorno muito mais rápido. Havendo o estímulo, pode-se elevar a produção no espaço de uma safra, ressarcindo-se o capital em poucos anos. Se isso não ocorre, é porque os subsídios nunca foram o problema.

Um diagnóstico errado acarretará inevitavelmente soluções estúpidas. Na Argentina, poríbem-se as exportações e os agricultores fazem greves e piquetes. Na Bolívia, a mesma medida criou uma nova rota de contrabando e um novo ramo na atividade criminosa: o tráfico ilícito de alimentos (para solucionar o problema o governo de Evo Morales teve que criar mais não sei quantos postos militares de fronteira). E no mundo inteiro são tomadas medidas semelhantes. A maioria dos países respodeu ao crash de 29 com protecionismo: deu no que deu. Alguém disse que para todo problema complexo há uma solução simples - e errada. Discordo. Há sempre uma solução baseada na força e outra, em estímulos - essa coisa a que os detratores chamam "mercado". A última - e correta - é bastante simples quando se olha bem.

* Os Estados Unidos têm uma posição ambígua: contra os subsídios europeus, a favor dos próprios. Além disso, há um forte debate interno entre os produtores que recebvem os subsídios e os contribuintes que pagam por eles. O caso do milho foi emblemático: o congresso aprovou, Bush vetou e o congresso derrubou o veto.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Ócio Criativo

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Estou terminando de ler o livro de Domenico DeMasi, que foi comprado há alguns anos e aguardava na prateleira a hora de ser lido. Porque eu acho que os livros têm momentos certos, e isso em parte justifica meu hábito de comprá-los em quantidades muito superiores às que consigo ler: quando o tempo chega, é preciso que o livro esteja à mão. Meu atual estado mental requerial algo interessante, mas desimportante e de leitura leve. Estava em casa, e fiz o que costumo fazer quando termino um livro e ainda tenho disposição para mais leitura - porque há livros que terminam num ápice e deixam o leitor atônito, eufórico ou prostrado, de autores tão díspares quanto Sartre e Dumas pai; outros, como o Memórias Póstumas que acabara de ler, levam o leitor ao cume antes do fim, e permitem que a digestão se faça ao longo das últimas páginas. Enfim, o que fiz foi percorrer as prateleiras de livros não lidos, atrás de algo que me chamasse a atenção. Topei com DeMasi, cuja idéia de ócio criativo já não me entusiasmava o suficiente para merecer uma leitura descansada, mas ainda me despertava curiosidade. Com baixas espectativas, fiquei positivamente surpreso com esse livro-entrevista. Recomendo para uma leitura distraída no ônibus ou na praia. Sem mais prolegômenos, eis algumas conclusões preliminares, tiradas a umas dez páginas do fim:

1- A idéia de uma sociedade pós-industrial é cativante, e é preciso olhá-la com ressalvas. A principal proposta concreta de DeMasi, a redução da jornada de trabalho, foi um estrondoso fracasso na França, e a promessa de abolir a semana de 35 horas deu a vitória a Sarkozy.

2- Ainda assim, é evidente que o avanço tecnológico permitirá que se produza cada vez mais com cada vez menos trabalho. O problema aí é econômico: aumenta-se a demanda de capital e diminui-se a de mão-de-obra (e também de cérebro-de-obra). O resultado é que o primeiro torna-se cada vez mais bem-remunerado e o segundo, freqüentemente subutilizado. E ainda não se propôs nenhuma solução para isso fora do velho Estado de Bem-Estar.

3- Mesmo isso está longo da realidade brasileira. Aqui o investimento ainda não desemprega. Antes de começar a aprofundar-se, o capitalismo ainda tem muito para onde se espalhar.

4- A idéia de unir trabalho, "jogo" e estudo em uma coisa só, sem patrões nem horários, parece maravilhosa, mais ainda é para poucos. Mas DeMasi tem razão num ponto: é a cultura, mais que a economia, que impede a expansão dessa realidade.

5- DeMasi esteve na Bahia e sentenciou que é o lugar no mundo onde mais se pratica o ócio criativo. Podemos hoje dividir as pessoas pela sua opinião sobre a terra de Caetano e Gal: de um lado, os que pensam como DeMasi; de outro, os partidários daquele professor do berimbau. É preciso tomar o máximo cuidado com essa idéia de que o ziriguidum e a malemolência nos salvarão no final. É a tese central do mangabeirismo, e uma expressão nova de um velho colonialismo cultural. Mas disso falo outra hora.

6- O saldo da leitura é uma enorme frustração com minha carreira de burocrata.

afundou o fundo...

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No meu outro blog escrevi, sobre esse nosso 1984 caboclo, que na distopia lulista a novilíngua não precisa de enormes ministérios a reescrever dicionários. Basta substituir todo o raciocínio por metáforas futebolísticas. Pois o alvo mais recente desse esvaziamento do sentido das coisas foi o tal fundo soberano.

Lula e Guido Mantega, em seus delírios de potência petrolífera, queriam porque queriam o tal fundo. Os economistas palacianos admoestaram, os áulicos silenciaram, e nosso Colbert saiu-se com uma solução digna de toda a malemolência e ziriguidum destes trópicos: em vez de tomar emprestado a juros altos para fazer investimentos pouco rentáveis, vamos economizar e investir nos melhores títulos da atualidade, em termos de relação risco/benefício: os da dívida pública brasileira. Ou seja, no lugar de nos tornar-se devedor de quem cobra muito para poder ser credor de quem paga pouco, o governo fará uma poupancinha para ser credor de si mesmo. Para uma esquerda tão singular, graças à qual o Estado brasileiro tem superávit nominal pela primeira vez na história recente, a saída tem uma virtude maravilhosa: permite abater o principal da dívida pública sem aumentar oficialmente o superávir primário, esse malvado estratagema neoliberal para surrupiar a riqueza do povo trabalhador e sustentar a opulência das meretrizes do capital internacional. Não! Um governo socialista não faz superávit primário, investe no fortalecimento do estado e na soberania nacional!

Na era do lulismo, o triunfo do óbvio deve ser sempre comemorado com entusiasmo. Mas corrói-se um pouquinho mais esse aspecto da verdade que consiste em dar às coisas o nome que elas têm.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

soberania pelos fundos

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Os próceres da Bruzundanga devem ter ficado sabendo dessa estória de "fundo soberano" como eu, pelo noticiário. Trata-se de um instrumento utilizado por emirados petrolíferos e repúblicas escandinavas para evitar os efeitos cambiais de um superávit comercial constante. Nada parecido com o que temos por cá. Virou notícia porque algumas instituições internacionais estão preocupadas com o efeito de tais fundos no mercado. Deveriam ter deixado quieto, para não chamar a atenção. Agora, lula também quer um.

Henrique Meirelles chamou uma entrevista coletiva para dizer que não sabe como, para que nem com que dinheiro será constituído o tal fundo. Quando se trata de explicar à sociedade o porquê de algum empreendimento de finalidades vagas e custos bilionários, a resposta do governo é sempre um fátuo e sonoro "e por que não?".

Vide a tal TV pública. Se a imprensa e a oposição tiverem algum senso de oportunidade, vão chamar logo a traquinanha de "fundo do PT". E com razão. Vaticino já: o ufanista "fundo soberano" será instituído via MP, dotado de uma independência nos moldes daquela dada à ANAC, acompanhado da última jabuticaba petista: não será estatal, será público. Decerto terá um conselho gestor composto de "representantes da sociedade civil".

O problema mais óbvio é que o tal fundo acabará em descompasso com a política cambial do BC. Teremos duas políticas econômicas, uma "do governo", outra "da sociedade". Jabuticaba de novo.

O menos óbvio é que está em curso uma novíssima forma de estatização. A esquerdalha mais obtusa faz plebiscitos para reestatizar a vale. Os petistas mais pragmáticos, na surdina, lançam mão de mecanismos menos transparentes e mais livres de controles institucionais com a mesma finalidade. O monopólio do petróleo está sendo lentamente retomado pela Petrobrás. Os fundos de pensão em breve controlarão a super-tele (jabuticaba III), a ser criada por decreto. O fundo soberano terá identico fim, com ainda mais abrangência. Farão a reestatização, na lei ou no capital.

O resultado é que o governo poderá usar nosso dinheiro para agir no mercado sem controles democráticos. E, a depender da conformação do tal fundo, o PT continuará no controle, por procuração, mesmo depois de deixar o govero.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Assassino! Assassino!

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"O brasileiro é um feriado" - Nelson Rodrigues

O caso Isabela Nardoni. Naturalmente, já há quem se ocupe em noticiar a notícia e comentar o comentário. Há as indefectíveis acusações de linchamento midiático, comparando a cobertura "histérica" do caso Nardoni a outras em que a mídia também pecou pela falta de serenidade e "isenção de ânimo", como a do mensalão, da epidemia de dengue, da queda do avião da TAM... Outros acham tudo muito natural: a revolta provocada pelo assassinato só provaria que ainda temos um resquício de humanidade.

Não gosto desse negócio de criticar a mídia. Em primeiro lugar, porque implica cair na imbecilidade de crer que existe "A Mídia", categoria ontológica que vai além dos elementos que a compõem. Além disso, fica sempre implícito um perigoso "alguém tem que fazer alguma coisa". É evidente que os veículos de comunicação não são inimputáveis. A análise e acrítica também podem, devem ser objeto de análise e de crítica. Mas, na hora de propor o que quer que seja, explícita ou implicitamente, sigo Tocqueville: os males da liberdade se combatem com mais liberdade.

Mas manifestar-se pela normalidade da coisa toda é ignorar os detalhes - onde, como sabem, está o diabo. É nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, que transparece o volksgeist carnavalesco que perpassa o episódio todo. Nossa "alma de feriado" não deixa de manifestar-se nem mesmo nas piores tragédias. Pelo contrário: as multidões sibilantes amam o grotesco.

É evidente que tudo isso faz parte da nossa normalidade. A atmosfera festiva, de feriado em dia-de-semana, que paira sobre a multidão que vaia, apupa e bate palmas enquanto grita, num coro cadenciado de torcida organizada, "A-SSA-SSI-NO! A-SSA-SSI-NO!" ou "JUS-TI-ÇA! JUS-TI-ÇA!" - isso já era de se esperar. Mas há algo de novo nisso tudo. Ou, talvez, algo que já estava caindo de maturo, mas encontrou terreno fértil para frutificar.

Tive minha primeira sensação de estranhamento quando a televisão noticiou, pouco após o fato: a mãe de Isabela respondeu que poderá, sim, criar uma ONG com o nome da filha - e, se respondeu, é porque alguém perguntou. Primeiro, há um desconforto lógico: faz sentido criar uma ONG para evitar a ocorrência de casos semelhantes, homenageando alguém que morreu, digamos, em um acidente de trânsito, em um assalto, por causa de uma bala perdida. Não sei se me entendem: o caso de Isabela Nardoni está nos noticiários e causa comoção justamente porque é excepcional, incomum, inusual.Será uma ONG dedicada a prevenir o assassinato de enteadas por madrastas? Para estudar o complexo de electra? Para exigir telas de proteção à prova de tesoura?

Depois, há um mal-estar, um écoeurement estético: agora, diante da morte de um ente querido, a primeira coisa que se pensa é em criar uma ONG? Segue com a mãe recebendo as condolências de Zezé di Camargo e Luciano, "muita força, viu?"; abraçando Xuxa e Sacha, "o Brasil inteiro está torcendo por você"; participando da missa-show do padre Marcelo Rossi - e tudo isso sem uma lágrima a correr no rosto, sem exibir a palidez e as olheiras que se espera da mãe enlutada. Catarse: as luzes, o som, o espetáculo a deixaram em estado de catarse. Essa é a hipótese mais branda.

Pior é considerar que se eliminou o sentimento do privado. Não há mais alegrias privadas, sofrimentos privados, vida privada. Está banida a solidão. A indignação faz passeadas, o luto funda ONGs e a tristeza é televisionada ao lado de celebridades.

Não, não segue o lugar-comum de que isso é culpa da sociedade do espetáculo, da mídia de massa ou o que quer que seja. No Brasil, esse fenômeno tem raízes bem particulares e identificáveis. A partir da redemocratização, começou a ser vendida a idéia de que ter uma opinião, expressar-se, ser ouvido - de que tudo isso consitui um direito - e um direito a ser exercido coletivamente. Vencida a ditadura militar, findo o tempo das grandes "marchas", restou a embriaguez da passeata, a sensação de que é legítimo e razoável fazer um ajuntamento carnavalesco para protestar contra balas perdidas, engarrafamentos, eventos climáticos ou homicídios em família. Vox populi vox dei: qualquer causa torna-se legítima se vociferada por uma turba barulhenta.

Vai demorar um bocado para nos lembrarmos de algo que nunca aprendemos direito: só o indivíduo vive, pensa e age; e só a solidão humaniza.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

"Ele é corajoso", diz um fiel.

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Quanto tempo será que demora até o Padre Adelir aparecer no Darwin Awards?

sobre vodka e punhaladas

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O noticioso de ontem informava, para menoscabo dos déspotas ao redor do mundo, que o presidente russo Vladmir Putin não está para casar-se com a flexível parlamentar e ex-ginasta Alina Kabayeva. Os jornalistas que haviam noticiado o fato vieram a público confessar que tudo se tratou de uma brincadeira de repórteres bêbados.

É bastante plausível que a confissão tenha resultado da persuasiva solicitação de agentes da ex-KGB. Mas, em se tratando de um país em que acontecem coisas como esta, minha aposta será sempre na versão mais absurda dos fatos.

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Por enquanto, sem pretensões. Apenas conversando comigo mesmo, dando notícias e matando o tédio.