segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Um Oriente ao Oriente do Oriente

A tristeza dos trópicos e os trópicos da tristeza.
J'avais cherché une societé réduite à sa plus simple expression. Celle de Nambikwara l'était au point que j'y trouvait seulement des hommes.
(Eu procurava uma sociedade reduzida à sua mais simples expressão. A dos Nambikwara o era a tal ponto que nela eu encontrei apenas homens.)
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"Só o Ocidente produziu multiculturalistas", sentencia a crítica rasa ao relativismo cultural. Apesar da ligeireza do argumento, ele expressa bem algumas contradições. Lévi-Strauss, nos capítulos finais de Tristes Tropiques, resume-as assim:
Em primeiro lugar, há a contradição na condição do etnógrafo (ou do multiculturalista). Superada a idéia roussoniana do "bom selvagem", é preciso reconhecer que sociedades ditas "primitivas" não são livres de conflitos e contradições. Entretanto - sem ingenuidades metafísicas - não há critérios objetivos para julgá-las, pois o observador está preso à sua própria bagagem cultural. A única objetividade possível consiste em tomar como dados os valores da sociedade observada, sem questioná-los. Ou seja: de um lado, o etnógrafo (ou multiculturalista) procura o exotique em razão de uma recusa utópica de sua própria sociedade; de outro, assume em relação às culturas que encontra uma posição intransigentemente conservadora.
Depois há a contradição da própria idéia de tolerância. Usa-se o exemplo do Islã: os maometanos simplesmente não conseguem compreender por que o resto do mundo não se converte a essa religião que, além de ser portadora da Verdade revelada, possui a suprema virtude da tolerância. A posição do Ocidente não é menos ambígua: não nos é dado julgar outras sociedades, mas estamos em vantagem porque sabemos disso. 
Ele sustenta, entretanto, que essas contradições são apenas aparentes. Para começar, não se trata de sermos tolerantes, mas de reconhecermos a franca superioridade de soluções mais antigas (ou "primitivas") para os problemas com os quais a Ocidente ainda se debate. Depois, a abordagem conservadora de outras culturas, com o objetivo de compreendê-las, serve para oferecer à Europa um meio de se reinventar, "en nous rapportant à un temps où notre monde a perdu la chance que lui était offerte de choisir entre ses missions" (levando-nos de volta a um tempo em que nosso mundo perdeu a chande de escolher entre suas missões - p. 471).
Quanto "cansaço da vida" em uma frase! Mas isso não diz respeito a nós, que não somos europeus. O que nos interessa é o problema ético de como conviver com culturas radicalmente diferentes.
A certa altura de sua busca pela etnia Nambikwara, talvez uma das mais primitivas da América do Sul, Lévi-Straus ouve um relato desconcertante. Ao longo da linha Rondom se instalara um grupo de missionários americanos. Um deles dá uma aspirina a um indígena doente, que morre dias depois. Os Nambikwara, pensando tratar-se de envenenamento, matam a pauladas todos os missionários - um casal de adultos, um adolescente e uma criança de colo.
Meia centena de páginas depois, o etnógrafo confraterniza com os homicidas, que disputam alegremente sobre quem desferiu os melhores golpes. O fato é relatado a frio, sem um esboço de reprovação. Somente os missionários são objeto de um julgamento moral: esses puritanos, observa, são criados para crer em um inferno de óleo fervente e labaredas de enxofre, e tendem a ser bastante desumanos (ele parece esquecer que o assassinato não foi causado por uma desumanidade, mas por uma aspirina).
Embora estejam quase tão distantes de um acadêmico francês quanto um Caduveo ou um Bororo, missionários americanos pertencem ao universo ocidental e, portanto, são seres humanos que fazem escolhas. Os Nambikwara, ao contrário, pertencem a uma sociedade exótica, cujos valores nos são inacessíveis. Por isso, Levi-Strauss prefere incluí-los no mundo natural, regido por leis de causalidade e onde não há lugar para julgamentos morais. Então, bem, se alguém é picado por uma cobra, não se deve condenar a maldade do animal, mas a imprudência do homem.
Essa abordagem, que se pretende revolucionária, em nada difere da tradição européia de instrumentalização e desumanização das populações do Novo Mundo. Quem não é objeto de julgamentos tampouco pode ser sujeito de direitos, e tratar as ações de seres humanos em termos de relações causais é roubar-lhes a liberdade de escolha - juntamente com a responsabilidade que a acompanha. Essa mentalidade pode servir para um europeu lidar com as suas próprias contradições, mas não para fundamentar as relações entre culturas diferentes que precisam conviver em uma mesma comunidade política. Nesse caso, única solução viável é reconhecer liberdades e conferir direitos, mas para tanto é preciso aceitar a idéia de que sociedades e culturas se transformam (e, eventualmente, desaparecem) quando os homens fazem escolhas. Se, por causa disso, a Europa ficar sem matéria-prima para as suas revoluções, paciência!

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