quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um Oriente ao Oriente do Oriente

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ou Sobre Camelos e Mangabas
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Mangabeira Unger. Passei os olhos sobre algumas coisas que o sujeito escreveu. Sua tese central é a da sociedade como artefato: pretensa síntese dialética de marxismo e liberalismo, procura desvencilhar-se do determinismo do primeiro sem recair na ingenuidade contratualista do segundo; a sociedade pode ser construída como quisermos, sim, mas não podemos esquecer as estruturas... Subjacente a esse quase existencialismo político, há a crença na força telúrica do nosso ziriguidum e da nossa malemolência, que nos conferem o destino histórico de curar a neurastenia do ocidente - gostemos ou não.

A relativa ascenção política do mangabeirismo - que tem por avatares Ciro Gomes, aquele da nova hegemonia, e talvez o juiz DeSanctis - andava me preocupando bastante. O qualunquismo lulista é quase inóquo, mas essa auto-orientalização me parecia menos inofensiva: povos e nações que se crêem portadores do destino da humanidade costumam embarcar em aventuras desastrosas (sim, me refiro à Alemanha); quando essa crença não passa da concretização de anseios estrangeiros, pior ainda.

Borges dirimiu meus temores. Em uma conferência sobre a relação entre poesia gaúcha e poesia gauchesca, o argentino menciona um fato transcedental: não há camelos no alcorão. Inserido na realidade dos desertos do levante, Maomé não precisa retratá-la; o que há nela de pitoresco e definidor - os camelos - é para ele banal, cotidiano, indigno de nota. Não precisa esforçar-se para ser árabe porque é árabe.

Acho que a invenção da brasilidade remonta à Era Vargas. Quando o país iniciou sua transformação em uma sociedade industrial, passamos a não mais incorporar as tradições nacionais e regionais como as plantas dão frutos, com naturalidade e inconsciência. No exato instante em que começamos a desejar ser brasileiros, deixamos de sê-lo.

O próprio Mangabeira Unger é como que um símbolo disso. Árvore nativa por parte de mãe, anglo-saxão por parte de pai, seu nome já denota a condição de apátrida. Sendo americano sem perceber (e, por isso mesmo, de forma autêntica), esforça-se para criar uma identidade a partir da personificação de uma nacionalidade e de uma cultura; mas só consegue fazê-lo com aquele sotaque carregado, porque só viveu a brasilidade como representação mítica do estrangeiro, do exotique.

Nosso mangabeirismo - em sentido amplo, de afirmação de uma nacionalidade perdida - não deve, portanto, causar espécie. A profusão de mulatas mulatíssimas e seminuas, de índios pintados para a guerra, de samba e futebol, essa celebração do exotismo em todas as nossas manifestações culturais - tudo isso não passa de uma tentativa de reviver como farsa o que foi nossa brasilidade trágica.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas ainda menos autêntico que o mundo de mulatas, carnaval e futebol é a nossa gauchidade de cavalos, bombacha e guaica. Esse texto me lembro a música "a luz de tieta" do caetano veloso:

Todo dia é o mesmo dia
A vida é tão tacanha
Nada novo sobre o sol
Tem que se esconder no escuro
Que na luz se banha
Por debaixo do lençol
Nessa terra a dor é grande
A ambição pequena
Carnaval e futebol
Quem não finge, quem não mente
Quem mais goza e pena
É que serve de farol
Existe alguém em nós
Em muito dentro nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você, de mim
Que grita para quem quiser meu ouvir
Quanto canta assim:
Êta, êta, êta, êta
É a lua, é o sol,
É a luz de Tieta, êta, êta
Toda noite é a mesma noite
A vida é tão estreita
Nada de louvor ao luar
Todo mundo quer saber
Com quem você se deita
Nada pode prosperar
É domingo, é fevereiro,
É sete de setembro
Futebol e carnaval
Nada muda, é tão escuro
Até onde eu me lembro
Uma dor que é sempre igual.