sexta-feira, 27 de junho de 2008

Aborto, Drogas e Saúde Pública

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Um argumento abastardado domina as discussões sobre dois assuntos importantes: descriminalização (não sei de onde tiraram "descriminação") das drogas e legalização do aborto.

Antes o seguinte: de vez em quando me pergunto qual a diferença entre descriminalizar e legalizar. Vocês sabem: em uma sociedade democrática, tudo o que não é proibido é permitido. Assim, tudo o que a lei não proíbe é "legal". E só há duas formas de se proibir uma conduta: ou ela é um crime, ou é uma infração administrativa (como dirigir sem cinto de segurança, por exemplo). Então, descriminalizar implica que o tráfico de drogas continuará ilegal, mas será punível com multa ou cassação de alvará? Não me espantaria se assim fosse, mas acredito que essa é uma daquelas distinções que existem apenas no mundo da retórica, sem a preocupação de guardar qualquer relação com a realidade objetiva. Para uns, o termpo "descriminalizar" é preferível por dar a entender que se trata de uma conduta que foi antes "criminalizada", ou seja, tornada crime por razões sócio-econômicas sem qualquer relação com a moralidade ou imoralidade intrínseca ao ato. Eu tenderia a concordar com esse posicionamento, se ele não presumisse a existência de uma moralidade absoluta ante a qual algum iluminado deva cotejar todo o Código Penal. Outros, que preferem o mais moderno "descriminar", parecem tratar o termo como um justo meio - ou, dependendo de gosto, uma síntese dialética - entre o extremado "legalizar" e o superado "proibir". Os ares de fazedor de neologismos entendido que essa palavrinha empresta ao falante substituem com vantagem qualquer definição de seu significado.

Mas vamos ao argumento: precisamos tratar o problema das drogas como uma questão de saúde pública; precisamos tratar o aborto como uma questão de saúde pública. Minha platitude de hoje é a seguinte: drogas e aborto não são complexos problemas de saúde pública, são simplíssimas questões de liberdade individual. Querem ver?

Das duas, uma: ou o feto é um ser humano vivo, ou o feto não é um ser humano vivo. Não há meio-termo possível entre ser um ser humano vivo e ser outra coisa que não um ser humano vivo. Na primeira hipótese, o direito do feto à vida tem precedência sobre qualquer coisa - seja a saúde, a vontade ou o bem-estar alguém. Na segunda, não há nele - ou nisso - sujeito de direitos, e a livre disposição do próprio corpo, pela gestante, é absoluta.

Com as drogas, a mesma coisa: abstratamente, cada um tem o direito de inserir o que quiser no próprio organismo e deve responder pelas conseqüências. Concretamente, dada a proibição, o usuário é co-autor de todos os demais crimes cometidos pelo tráfico, e deve estar sujeito a uma punição à altura. Porque não se trata de uma questão de desobediência civil: rebelar-se contra a supressão de alguma liberdade fundamental em uma ditadura é, sim, desobediência civil; contrariar uma legislação votada democraticamente que impede a utlização lúdica de meia-dúzia substâncias - ainda que essa restrição não se justifique - isso é apenas crime.

E a saúde pública? Bem, aqui vai outra obviedade, embora esta, por incomum, possa surpreender um pouco: uma vez que a saúde consiste no bem-estar físico e psicológico de alguém, e que dois seres humanos, até onde se sabe, não podem dividir um mesmo organismo ou uma mesma psiquê, não pode existir uma "saúde pública", apenas a saúde particular de cada indivíduo. O que era para ser uma metonímia - a saúde pública não é senão as várias saúdes particulares, tomadas em conjunto - acabou ganhando sentido literal, transformando-se em conceito abstrato e conduzindo a toda a sorte de bobagens.

E a mais perigosa dessas bobagens é a seguinte: se a saúde é um bem público, não um bem privado, sua preservação torna aceitavel todo tipo de interferência na liberdade indivídual. Para preservar a saúde das inúmeras gestantes, o aborto será legalizado e feito gratuitamente pelo SUS - em casos a serem definidos por portaria do Ministério da Saúde. Se as drogas são uma doença, os usuários de drogas devem ser compulsoriamente tratados, e os traficantes, severamente punidos. Fumar causa câncer, então o tabagismo deve ser banido da sociedade - não por meio de uma proibição pura e simples, coisa de reacionários desinformados, mas por meio de medidas que insidiosamente transformem o fumante num pária. O que esses três posicionamentos têm em comum? A eliminação da responsabilidade individual e sua conseqüência inexorável: a supressão da liberdade.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

CSS, Vinculações Constitucionais e o Conselheiro Acácio

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Mais um capítulo em minha luta incansável pelo triunfo do óbvio.

Primeiro o que vem antes: não sou contra a CPMF. Tudo bem: na atual conjuntura, o governo federal não precisa dessa receita, e o nosso sistema de saúde continuará "beirando a perfeição" sem ela. O decantado efeito cascata do imposto, diante da completa irracionalidade do sistema tributário brasileiro, não é coisa que mereça tanta gritaria. A carga tributária tãopouco: um Estado cuja Constituição promete saúde, educação, cultura, lazer e mais um punhado de coisas, tudo de graça, fatalmente consumirá perto de metade da riqueza do país. Ou bem aceitamos que a sociedade não é responsável pela felicidade eterna de cada indivíduo, ou bem aprendemos a gostar de pagar impostos.

Pois bem: e a CSS? A CSS é vinculada. Toda a sua receita irá para um fundo inteiramente destinado à "Saúde" - algo bem em sintonia com o espírito do tempo, isso de oferecer coisas tangíveis a substantivos abstratos. Sou contra o aumento das verbas "da Saúde"? Não particularmente. Sou contra a burrice.

A cantilena governista afirma que o imposto - está garantido - irá todo ele para "a Saúde". A oposição contrapõe que "a Saúde", se vai mal, não é por falta de recursos. Ninguém lembra que a vinculação de um imposto é algo conceitualmente impossível, ou no mínimo irrelevante: dinheiro não tem carimbo, e se, digamos, R$ 10 bilhões do novo imposto forem investidos na "Saúde", isso não impede que outros R$ 10 bilhões de outras fontes deixem de sê-lo, mantendo inalterado o montante. Põe-se de um lado, tira-se de outro, o resultado é o mesmo. Ficou claro, ou eu preciso repetir a tautologia mais uma vez?

Então, esse negócio de imposto vinculado tem um efeito fortemente negativo sobre um fator importantíssimo na economia da política: nosso discernimento agregado. Quanto mais se repete que a CSS irá toda para a saúde, menor fica a capacidade da população de avaliar adequadamente a realidade.

Com as vinculações constitucionais ocorre algo parecido. O Congresso Nacional consegue aprovar uma Emenda Constitucional dotando um percentual do orçamento à Saúde (2/3 dos votos). Depois, passa uma Lei Complementar regulamentando-a (maioria absoluta). Como é que não é capaz de incluir o montante nas Leis Orçamentárias de cada ano (maioria simples)? A resposta é constrangedoramente simples: basta os grupos de pressão insistirem um pouco, e nossos nobres parlamentares aprovarão a vinculação de 20 % do orçamento para A Saúde, 25% para A Educação, 15% para O Saneamento, 20% para A Segurança, 10% para o Meio-Ambiente, 15% para Investimentos e por aí vai. Afinal, quem discorda que cada uma dessas áreas é importantíssima para o Bem-Estar da Nação? Quando se elabora uma norma como a Emenda 29, a única questão posta é a relevância da Saúde. Quando se elabora um orçamento, é preciso confrontar a importância relativa de cada uma dessas áreas com a realidade dos recursos escassos. E cada vez que alguém faz a defesa de uma vinculação constitucional, nos afastamos um pouco mais de aprender a lidar com essa realidade.

A longo prazo, não importa se a Carga Tributária é de 35% ou 38% do PIB, se este cresce a 4,5% ou a 4,7%, se a SELIC fica em 13,5% com viés de alta ou em 13,75% sem viés. A longo prazo, o que interessa é se a sociedade é capaz de avaliar adequadamente a realidade e tomar decisões minimamente racionais. Sim, a longo prazo estaremos todos mortos. Mas, desde o bacharelismo sucupirense, passando pelo tucanês e chegando ao lulismo (esse tucanês para leigos), sempre tentamos transformar a realidade mudando o nome das coisas. Não custa experimentar essa novidade exótica que é o óbvio.

terça-feira, 17 de junho de 2008

ANAC e Daniel Dantas

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Com dois pontos pode-se traçar uma reta. O estrepitoso lobby da primeira-afilhada em favor da GOL e a discreta atuação de Daniel Dantas no conflito das teles têm inúmeros pontos em comum.

1- Nos dois casos, um megaempresário foi prejudicado pela atuação dos petistas em um setor fortemente regulado da economia. Dantas estava para ser alijado do setor de telecomunicações por sua proximidade com os governos anteriores; a GOL, pela proximidade entre o PT de São Paulo e a TAM.

2- Nos dois casos, o dito megaempresário contratou, a peso de ouro, um lobista poderoso: o primeiro-compadre Roberto Texeira (no caso Dantas, também o advogado-com-apelido-de-jogador-de-futebol Kakay, amigo de Dirceu).

3- Nos dois casos, a atuação do lobista semeou a cisânea entre cabeças coroadas do PT. José Direceu passou a defender Dantas, contra Luiz Gushiken; Dilma Roussef passou a defender a GOL, fazendo pressão sobre os contínuos de José Dirceu na ANAC.

4- Nos dois casos, Dirceu, enfraquecido, acabou derrotado. Os fundos de pensão alijaram Dantas da Brasil Telecom no melhor da festa, quando o governo estava prestes a criar a SuperTele - uma empresa privada com o quase monopólio da telefonia no país. A GOL acabou ficando com uma VarigLog sem dívida e com um imenso patrimônio em concessões públicas.

O caso Dantas veio à tona em função de investigações do Ministério Público italiano sobre a Telecom Itália. O da ANAC, porque Denise Abreu não aceitou ser bode expiatório da crise aérea. Nos dois casos, os atingidos culparam a mídia golpista.

Mais detalhes sobre o caso Daniel Dantas aqui.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Cassandra

Reinaldo Azevedo andou lendo este blog.

Eu: "Farão a reestatização, na lei ou no capital."

Ele: "A 'Quarta Via', como o nome sugere, descarta as outras três: o socialismo (nos moldes soviético ou cubano), o capitalismo à americana e a social-democracia de modelo europeu. O que seria a alternativa pressupõe isto mesmo que se está construindo (ou reconstruindo, já que tivemos o geiselismo, né?) no Brasil: o estado disciplina o mercado, mas não por causa da sua força normativa. Ele passa a ser também um jogador."

Eu: "O resultado é que o governo poderá usar nosso dinheiro para agir no mercado sem controles democráticos. E, a depender da conformação do tal fundo, o PT continuará no controle, por procuração, mesmo depois de deixar o govero."

Ele: "Durante o regime militar, toda estatal tinha sempre um coronel no comando ou, ao menos, no conselho executivo — muitas empresas privadas também os contratavam porque isso abria portas no establishment militar-burocrático. Os “coronéis” da hora são os petistas. Eles já se espalham pelas estatais, onde permanecerão por um bom tempo mesmo que o PT venha a perder as eleições, e também já têm assento no conselho de empresas privadas."

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A Crise Política

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Chegou-se a um ponto em que até eu, que custo a surpreender-me com o petismo, já me surpreendo de não me surpreender mais. Ao que tudo indica, a última denúncia do Estadão sobre Dilma Roussef (sem link, amanhã estará em todos os jornais) tem o potencial de decapitar a novíssima presidenciável petista. Dilma fará o caminho inverso de Palocci: terá sobrevivido ao fait divers e cairá por causa affair.

Alguns aspectos da nova crise política chamam a atenção. Em primeiro lugar, Dilma tem sido constantemente vítima do fogo amigo - tanto o "vazador" do dossiê como a nova Roberto Jefferson são amigos de José Dirceu. Isso impossibilita que se fale em qualquer complô da mídia golpista ou das oposições: ambos têm sido pateticamente pautados pelos petistas. Isso se deve, claro, ao fato de dilma ser uma neófita. Mas os efeitos a longo prazo das denúncias recairão sobre o partido.

Há também o significativamente pitoresco: o principal articulador da falcatrua era compadre de Lula, termo que remete a estruturas de poder arcaicas que a republica-do-tapinha-nas-costas petista soube reinventar. Consta que a filha do sujeito saía das reuniões da ANAC vociferando que "papai já está no gabinete do presidente". Isso gera uma sensação paradoxal, ao distoar dos valores históricamente defendidos pelo petismo, ao mesmo tempo que se encaixa perfeitamente nas estruturas típicas do sindicalismo e dos movimentos sociais. É um traço da contradição fundamental do PT. Trata-se de um partido fundado num momento de perplexidade histórica, especialmente no Brasil. Não podia deixar de defender a Democracia e o Estado de Direito, num país que saía de uma ditadura, mas tinha a herança da esquerda pré-89 - com a qual até hoje não sabe o que fazer. E essa esquerda carrega no sangue o compadrio e o privilégio.

Por fim, fica a sensação de que o que falta ao PT não é um candidato viável, mas um político viável. Os próceres do partido não resistem a cinco minutos sob os holofotes, sem que a atenção atraída faça pulular denúncias - da mídia golpista, da oposição reacionária ou do próprio PT.

A Crise dos Alimentos

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Quando comecei este blog, pensei em escrever um texto triunfalista sobre a crise dos alimentos. Triunfalista porque logo saltou-me aos olhos a relação entre o aumento dos preços e as medidas propostas pelo ecologismo em moda, como a limitação preservacionista das áreas plantadas, os biocombustíveis, a proibição dos trangênicos, a agricultura "orgânica", etc. Além disso, há a questão dos subsídios. Na OMC, tradicionalmente, sempre houve uma divisão em dois blocos claros: de um lado, os países - ricos ou remediados - com grande área agriculturável, como Brasil e Estados Unidos*; de outro, os países europeus, onde a agricultura já não faz mais sentido economicamente e sua preservação tem finalidades sócio-culturais, juntamente com países realmente pobres, especialmente africanos, que se beneficavam com a redução dos preços. Porque subsídios são isto: uma estímulo artificial ao aumento da produção, uma pseudo-redução dos custos, que, naturalmente, tende a fazer baixar os preços - e justamente por isso incomoda tanto os produtores.

E eu perguntaria no final: qual será o resultado dessa clivagem na ideologia do politicamente correta? Vaticinaria que a Europa continuaria preservacionista, defendendo a pequena propriedade tradicional, que produz menos, mas com uso mais intenso de mão-de-obra e maior valor agregado; já os países pobres e os exportadores de alimentos uniriam-se exigindo mais comida, e ponto final. Pois bem: como eu disse, pensei em escrever, mas não escrevi. Achei as conclusões evidentes demais. Já devia saber que o triunfo do óbvio jamais pode ser dado como certo, e que a pugna em favor da tautologia não deve cessar nunca.

Eles começaram bem: criticando os biocombustíveis. Era uma crítica fácil, bastava fazer coro ao que Chávez e Fidel vêm dizendo já há alguns anos - pensando em seus lucros com o petróleo, claro, não em uma crise de alimentos que ninguém antevia. Mas era um bom começo, e tinha algo de verdade. Diversamente do que pode ocorrer com o milho, a produção de etanol de cana-de-açúcar, com o conseqüente aumento no preço da cachaça e da rapadura, jamais gerará hordas de famigerados. Mas há um limite intransponível. Pode-se ainda aumentar muito a produção agrícola brasileira com o incremento da técnica, mas, em algum momento, chegaremos a um brete malthusiano: ou alarga-se a área plantada, ou estagna a quantidade produzida - ou, ainda, avança-se mais sobre a amazônia e o cerrado. Hoje, de fato, é burrice dizer que o etanol brasileiro seja uma causa relevante da crise - e o mesmo vale para o americano. Mas imaginem o que ocorrerá se for implementado o projeto de substituição da matriz energética subjacente à idéia de biocombustíveis. Cada ser humano motorizado, consumidor de luz elétrica, de aquecimento e de produtos industriais, precisará extrair da terra cem vezes mais calorias que atualmente.

A segunda bobagem do discurso atual é o que se diz dos subsídios. Extrapola-se para a agricultura um raciocínio cabível na produção industrial: os subsídios atuam como uma forma de dumping, reduzindo os preços e inviabilizando a produção nos países menos desenvolvidos; quando o produto escasseia e os preços sobem, não há estrutura nesses países para aumentar a produção em tempo hábil. Só que a agricultura exige investimentos significativamente menores e instituições mais simples que a indústria, e dá retorno muito mais rápido. Havendo o estímulo, pode-se elevar a produção no espaço de uma safra, ressarcindo-se o capital em poucos anos. Se isso não ocorre, é porque os subsídios nunca foram o problema.

Um diagnóstico errado acarretará inevitavelmente soluções estúpidas. Na Argentina, poríbem-se as exportações e os agricultores fazem greves e piquetes. Na Bolívia, a mesma medida criou uma nova rota de contrabando e um novo ramo na atividade criminosa: o tráfico ilícito de alimentos (para solucionar o problema o governo de Evo Morales teve que criar mais não sei quantos postos militares de fronteira). E no mundo inteiro são tomadas medidas semelhantes. A maioria dos países respodeu ao crash de 29 com protecionismo: deu no que deu. Alguém disse que para todo problema complexo há uma solução simples - e errada. Discordo. Há sempre uma solução baseada na força e outra, em estímulos - essa coisa a que os detratores chamam "mercado". A última - e correta - é bastante simples quando se olha bem.

* Os Estados Unidos têm uma posição ambígua: contra os subsídios europeus, a favor dos próprios. Além disso, há um forte debate interno entre os produtores que recebvem os subsídios e os contribuintes que pagam por eles. O caso do milho foi emblemático: o congresso aprovou, Bush vetou e o congresso derrubou o veto.