sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Coincidência do destino...

... ou ironia sutil?


Tinha 19 anos. Fui a um seminário em Chicago sobre depressão. Consegui errar tudo: cheguei um dia e uma hora atrasada para a primeira aula. Como não apareci, minha inscrição foi cancelada. A atendente da faculdade viu meu desespero e disse que eu poderia me transferir para outro curso, com início naquele dia. O professor era John Ratey, papa do déficit de atenção. - Entrevista com a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, especialista em (e paciente de) Transtorno de Déficit de Atenção.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Primavera de Tegucigalpa

 .
A História é uma moça tímida, alguém escreveu. Antes da invasão da Polônia e da descoberta do pacto germano-soviético, quem ousava criticar líderes populares (e democraticamente eleitos), como Hitler e Mussolini, que reconstruíam a economia e a auto-estima de países humilhados? Quanto tempo o Ocidente demorou para perceber que a Revolução Cultural não foi um Maio/68 Chinês, mas um expurgo deflagrado por Mao Tse-tung para aumentar seu poder pessoal? Dar sentido aos fatos e discernir os lados em conflito depende da lenta depuração do processo histórico. Só retroativamente a condescendência e a simpatia se mostram criminosas.

Há momentos, entretanto, em que a História se desvela, concentrando suas dimensões de tragédia e de farsa, e a crueza dos fatos permite que sejam interpretados em tempo real. Honduras vive hoje um desses momentos raros, e os acontecimentos trazem em si uma carga simbólica que permite descobrir-lhes o sentido. Manuel Zelaya, o latifundiário conservador que sofreu uma súbita epifania socialista, representa como ninguém a alma do bolivarianismo: essa mistura de marxismo barato e nacionalismo autoritário revela-se a ideologia de uma elite criolla que pretende governar nações como manda em suas fazendas e quartéis. O "golpe" que o depôs não é menos exemplar. Assim como Zelaya e Cháves, Isabelita Péron e Salvador Allende tomaram medidas autoritárias contra as quais as instituições democráticas não tinham defesas. Quando foram depostos, entretanto, seus países levaram décadas para libertar-se de seus libertadores. Em Honduras, ao contrário, os militares despacharam o presidente para o exterior e, ato contínuo, entregaram o poder ao Parlamento, que manteve inalterada a data das eleições. Por fim, talvez vejamos o resgate da democracia hondurenha abortado pela intervenção de um concerto de nações estrangeiras, enquanto possíveis aliados (como os Estados Unidos e a União Européia) estão ocupados demais com seus próprios problemas para posicionar-se como deveriam. A trama é tão cristalina que, se um ficcionista a escrevesse, seria acusado de simplismo.

Esses momentos em que a dinâmica da História coloca-se em evidência costumam ser também seus pontos de inflexão. Após invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, começou a derrocada da liderança soviética sobre os partidos comunistas do Ocidente, em um processo que culminaria na Glasnost. O massacre da Praça da Paz Celestial selou o destino do maoísmo como alternativa política. As pessoas diretamente envolvidas, entretanto, costumam pagar caro por serem protagonistas da História. O caso hondurenho apontava para um desfecho diferente, com a realização de eleições em novembro e a possibilidade de uma transição relativamente pacífica. Mas o governo brasileiro, ao patrocinar a volta de Zelaya ao país, mostra-se disposto a cobrar do povo de Honduras um preço alto por tentar decidir seu próprio destino.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Um Oriente ao Oriente do Oriente

A tristeza dos trópicos e os trópicos da tristeza.
J'avais cherché une societé réduite à sa plus simple expression. Celle de Nambikwara l'était au point que j'y trouvait seulement des hommes.
(Eu procurava uma sociedade reduzida à sua mais simples expressão. A dos Nambikwara o era a tal ponto que nela eu encontrei apenas homens.)
.
"Só o Ocidente produziu multiculturalistas", sentencia a crítica rasa ao relativismo cultural. Apesar da ligeireza do argumento, ele expressa bem algumas contradições. Lévi-Strauss, nos capítulos finais de Tristes Tropiques, resume-as assim:
Em primeiro lugar, há a contradição na condição do etnógrafo (ou do multiculturalista). Superada a idéia roussoniana do "bom selvagem", é preciso reconhecer que sociedades ditas "primitivas" não são livres de conflitos e contradições. Entretanto - sem ingenuidades metafísicas - não há critérios objetivos para julgá-las, pois o observador está preso à sua própria bagagem cultural. A única objetividade possível consiste em tomar como dados os valores da sociedade observada, sem questioná-los. Ou seja: de um lado, o etnógrafo (ou multiculturalista) procura o exotique em razão de uma recusa utópica de sua própria sociedade; de outro, assume em relação às culturas que encontra uma posição intransigentemente conservadora.
Depois há a contradição da própria idéia de tolerância. Usa-se o exemplo do Islã: os maometanos simplesmente não conseguem compreender por que o resto do mundo não se converte a essa religião que, além de ser portadora da Verdade revelada, possui a suprema virtude da tolerância. A posição do Ocidente não é menos ambígua: não nos é dado julgar outras sociedades, mas estamos em vantagem porque sabemos disso. 
Ele sustenta, entretanto, que essas contradições são apenas aparentes. Para começar, não se trata de sermos tolerantes, mas de reconhecermos a franca superioridade de soluções mais antigas (ou "primitivas") para os problemas com os quais a Ocidente ainda se debate. Depois, a abordagem conservadora de outras culturas, com o objetivo de compreendê-las, serve para oferecer à Europa um meio de se reinventar, "en nous rapportant à un temps où notre monde a perdu la chance que lui était offerte de choisir entre ses missions" (levando-nos de volta a um tempo em que nosso mundo perdeu a chande de escolher entre suas missões - p. 471).
Quanto "cansaço da vida" em uma frase! Mas isso não diz respeito a nós, que não somos europeus. O que nos interessa é o problema ético de como conviver com culturas radicalmente diferentes.
A certa altura de sua busca pela etnia Nambikwara, talvez uma das mais primitivas da América do Sul, Lévi-Straus ouve um relato desconcertante. Ao longo da linha Rondom se instalara um grupo de missionários americanos. Um deles dá uma aspirina a um indígena doente, que morre dias depois. Os Nambikwara, pensando tratar-se de envenenamento, matam a pauladas todos os missionários - um casal de adultos, um adolescente e uma criança de colo.
Meia centena de páginas depois, o etnógrafo confraterniza com os homicidas, que disputam alegremente sobre quem desferiu os melhores golpes. O fato é relatado a frio, sem um esboço de reprovação. Somente os missionários são objeto de um julgamento moral: esses puritanos, observa, são criados para crer em um inferno de óleo fervente e labaredas de enxofre, e tendem a ser bastante desumanos (ele parece esquecer que o assassinato não foi causado por uma desumanidade, mas por uma aspirina).
Embora estejam quase tão distantes de um acadêmico francês quanto um Caduveo ou um Bororo, missionários americanos pertencem ao universo ocidental e, portanto, são seres humanos que fazem escolhas. Os Nambikwara, ao contrário, pertencem a uma sociedade exótica, cujos valores nos são inacessíveis. Por isso, Levi-Strauss prefere incluí-los no mundo natural, regido por leis de causalidade e onde não há lugar para julgamentos morais. Então, bem, se alguém é picado por uma cobra, não se deve condenar a maldade do animal, mas a imprudência do homem.
Essa abordagem, que se pretende revolucionária, em nada difere da tradição européia de instrumentalização e desumanização das populações do Novo Mundo. Quem não é objeto de julgamentos tampouco pode ser sujeito de direitos, e tratar as ações de seres humanos em termos de relações causais é roubar-lhes a liberdade de escolha - juntamente com a responsabilidade que a acompanha. Essa mentalidade pode servir para um europeu lidar com as suas próprias contradições, mas não para fundamentar as relações entre culturas diferentes que precisam conviver em uma mesma comunidade política. Nesse caso, única solução viável é reconhecer liberdades e conferir direitos, mas para tanto é preciso aceitar a idéia de que sociedades e culturas se transformam (e, eventualmente, desaparecem) quando os homens fazem escolhas. Se, por causa disso, a Europa ficar sem matéria-prima para as suas revoluções, paciência!

quarta-feira, 4 de março de 2009

Quizera...

.
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
-Fernando Pessoa

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Jean-Paul Sarte, Nelson Rodrigues e os tucanos

.
Os dois escritores do título são os maiores casos de genialidade combinada com estultice do Século XX.

Nelson Rosdrigues tinha uma adoração, digamos, rodrigueana pelo presidente Médici. Algo assim como o fetiche que Jorge Amado tinha pelos bigodes de Stálin. Há crônicas em O Reacionário em que o leitor quase chega a ouvir Nelson, com aquele sotaque de Antônio Conselheiro de minissérie da globo, repetir gozoso o nome do presidente: Emílio Garrastazú Médici, Emílio Garrastazú Médici. Um desavisado termina a leitura achando que se trata de um Charles DeGaulle tupiniquim, saído das profundezas do pampa para liderar a resistência bruzindanguense contra o comunismo e plantar rosas (era o Médici que plantava rosas? ou era o Geisel?). E mais: a grande virtude do presidente era ser um homem do povo. Com sua insuperável plasticidade, Nelson pinta-o no vestiário, após uma partida de futebol (eu disse que a coisa era rodrigueana), perguntando ao crioulo lustroso de suor: Como é que perdeste aquele gol?!?! A semelhança com nossos dias impressiona.

Sartre é outro gênio da raça que não tinha medo de dizer bobagens quando o assunto era política. Quem lê O Diabo e o Bom Deus não acredita que, até o fim da vida (e isso foi em 1980) o sujeito continuou estalinista "de colar decalco", como dizia o analista de Bagé. Os comunas não podiam nem ouvir falar em existencialismo, essa frescura pequeno-burguesa, mas Sarte cortejava-os com perseverança de mulher de malandro. Tem até um livrinho, chamado O Existencialismo é um Humanismo, que é a transcrição de uma palestra que o filósofo ministrou para tentar cativar a esquerda francesa. É de sentar e chorar. A simplificação da coisa é tal que poderia muito bem se chamar Existencialismo para Crinanças, mas não adiantou: os comunistas não entenderam e, como costuma acontecer nessas situações, só faltou correrem com ele a pontapés.

Mas isso se explica. A juventude de Sartre foi marcada pelo pré-guerra, em que a ponderação de figuras como Neville Chamberain e Édouard Daladier, que hesitaram em sufocar o nazi-fascismo no nascedouro, acabou levando à Segunda Guerra e ao Holocausto. Churchill dedicou-lhes uma daquelas suas frases definitivas: Aceitaram a desonra para evitar a guerra. Tiveram a desonra e terão a guerra. É daí que vem Mathieu Delarue, o personagem de A Idade da Razão que "perde a vida por delicadeza" ao querer conservar a liberdade à custa de evitar qualquer tipo de engajamento - seja político ou pessoal. A liberdade segundo o existencialismo consiste justamente em engajar-se, o que Sarte acaba confundindo com com escolher um lado e permanecer nele, não importa o que aconteça, como se o militante político fosse um torcedor do Internacional.

Já Nelson Rodrigues teve a vida pessoal marcada pela ditadura varguista. Seu irmão morreu vítima de um assassinato político e sua família acabou reduzida quase à indigência quando o jornal do pai foi fechado - empastelado, como diziam na época - pelo governo. Tornou-se um defensor intransigente da liberdade - "A liberdade é mais importante que o pão" era uma de suas frases obsessivas - o que, paradoxalemente, levou-o à defesa obstinada dos governos militares, mesmo quando censuravam suas peças, simplesmente porque do outro lado estavam os comunistas. É outro que acabou mulher de malandro por excesso de convicção.

Mas o que tem isso a ver com os tucanos, além da parte da estultice? Sartre e Nelson Rodrigues viveram uma época que transformou a ponderação em hesitação, e a hesitação em crime - e não perceberam quando essa época passou. Nós, ao contrário, temos a sorte de viver em um tempo em que o radicalismo parece proscrito da política, e a oposição ao governo Lula em geral, e os tucanos em particular, parecem não perceber que este tempo está se encerrando.