quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Primavera de Tegucigalpa

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A História é uma moça tímida, alguém escreveu. Antes da invasão da Polônia e da descoberta do pacto germano-soviético, quem ousava criticar líderes populares (e democraticamente eleitos), como Hitler e Mussolini, que reconstruíam a economia e a auto-estima de países humilhados? Quanto tempo o Ocidente demorou para perceber que a Revolução Cultural não foi um Maio/68 Chinês, mas um expurgo deflagrado por Mao Tse-tung para aumentar seu poder pessoal? Dar sentido aos fatos e discernir os lados em conflito depende da lenta depuração do processo histórico. Só retroativamente a condescendência e a simpatia se mostram criminosas.

Há momentos, entretanto, em que a História se desvela, concentrando suas dimensões de tragédia e de farsa, e a crueza dos fatos permite que sejam interpretados em tempo real. Honduras vive hoje um desses momentos raros, e os acontecimentos trazem em si uma carga simbólica que permite descobrir-lhes o sentido. Manuel Zelaya, o latifundiário conservador que sofreu uma súbita epifania socialista, representa como ninguém a alma do bolivarianismo: essa mistura de marxismo barato e nacionalismo autoritário revela-se a ideologia de uma elite criolla que pretende governar nações como manda em suas fazendas e quartéis. O "golpe" que o depôs não é menos exemplar. Assim como Zelaya e Cháves, Isabelita Péron e Salvador Allende tomaram medidas autoritárias contra as quais as instituições democráticas não tinham defesas. Quando foram depostos, entretanto, seus países levaram décadas para libertar-se de seus libertadores. Em Honduras, ao contrário, os militares despacharam o presidente para o exterior e, ato contínuo, entregaram o poder ao Parlamento, que manteve inalterada a data das eleições. Por fim, talvez vejamos o resgate da democracia hondurenha abortado pela intervenção de um concerto de nações estrangeiras, enquanto possíveis aliados (como os Estados Unidos e a União Européia) estão ocupados demais com seus próprios problemas para posicionar-se como deveriam. A trama é tão cristalina que, se um ficcionista a escrevesse, seria acusado de simplismo.

Esses momentos em que a dinâmica da História coloca-se em evidência costumam ser também seus pontos de inflexão. Após invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, começou a derrocada da liderança soviética sobre os partidos comunistas do Ocidente, em um processo que culminaria na Glasnost. O massacre da Praça da Paz Celestial selou o destino do maoísmo como alternativa política. As pessoas diretamente envolvidas, entretanto, costumam pagar caro por serem protagonistas da História. O caso hondurenho apontava para um desfecho diferente, com a realização de eleições em novembro e a possibilidade de uma transição relativamente pacífica. Mas o governo brasileiro, ao patrocinar a volta de Zelaya ao país, mostra-se disposto a cobrar do povo de Honduras um preço alto por tentar decidir seu próprio destino.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Um Oriente ao Oriente do Oriente

A tristeza dos trópicos e os trópicos da tristeza.
J'avais cherché une societé réduite à sa plus simple expression. Celle de Nambikwara l'était au point que j'y trouvait seulement des hommes.
(Eu procurava uma sociedade reduzida à sua mais simples expressão. A dos Nambikwara o era a tal ponto que nela eu encontrei apenas homens.)
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"Só o Ocidente produziu multiculturalistas", sentencia a crítica rasa ao relativismo cultural. Apesar da ligeireza do argumento, ele expressa bem algumas contradições. Lévi-Strauss, nos capítulos finais de Tristes Tropiques, resume-as assim:
Em primeiro lugar, há a contradição na condição do etnógrafo (ou do multiculturalista). Superada a idéia roussoniana do "bom selvagem", é preciso reconhecer que sociedades ditas "primitivas" não são livres de conflitos e contradições. Entretanto - sem ingenuidades metafísicas - não há critérios objetivos para julgá-las, pois o observador está preso à sua própria bagagem cultural. A única objetividade possível consiste em tomar como dados os valores da sociedade observada, sem questioná-los. Ou seja: de um lado, o etnógrafo (ou multiculturalista) procura o exotique em razão de uma recusa utópica de sua própria sociedade; de outro, assume em relação às culturas que encontra uma posição intransigentemente conservadora.
Depois há a contradição da própria idéia de tolerância. Usa-se o exemplo do Islã: os maometanos simplesmente não conseguem compreender por que o resto do mundo não se converte a essa religião que, além de ser portadora da Verdade revelada, possui a suprema virtude da tolerância. A posição do Ocidente não é menos ambígua: não nos é dado julgar outras sociedades, mas estamos em vantagem porque sabemos disso. 
Ele sustenta, entretanto, que essas contradições são apenas aparentes. Para começar, não se trata de sermos tolerantes, mas de reconhecermos a franca superioridade de soluções mais antigas (ou "primitivas") para os problemas com os quais a Ocidente ainda se debate. Depois, a abordagem conservadora de outras culturas, com o objetivo de compreendê-las, serve para oferecer à Europa um meio de se reinventar, "en nous rapportant à un temps où notre monde a perdu la chance que lui était offerte de choisir entre ses missions" (levando-nos de volta a um tempo em que nosso mundo perdeu a chande de escolher entre suas missões - p. 471).
Quanto "cansaço da vida" em uma frase! Mas isso não diz respeito a nós, que não somos europeus. O que nos interessa é o problema ético de como conviver com culturas radicalmente diferentes.
A certa altura de sua busca pela etnia Nambikwara, talvez uma das mais primitivas da América do Sul, Lévi-Straus ouve um relato desconcertante. Ao longo da linha Rondom se instalara um grupo de missionários americanos. Um deles dá uma aspirina a um indígena doente, que morre dias depois. Os Nambikwara, pensando tratar-se de envenenamento, matam a pauladas todos os missionários - um casal de adultos, um adolescente e uma criança de colo.
Meia centena de páginas depois, o etnógrafo confraterniza com os homicidas, que disputam alegremente sobre quem desferiu os melhores golpes. O fato é relatado a frio, sem um esboço de reprovação. Somente os missionários são objeto de um julgamento moral: esses puritanos, observa, são criados para crer em um inferno de óleo fervente e labaredas de enxofre, e tendem a ser bastante desumanos (ele parece esquecer que o assassinato não foi causado por uma desumanidade, mas por uma aspirina).
Embora estejam quase tão distantes de um acadêmico francês quanto um Caduveo ou um Bororo, missionários americanos pertencem ao universo ocidental e, portanto, são seres humanos que fazem escolhas. Os Nambikwara, ao contrário, pertencem a uma sociedade exótica, cujos valores nos são inacessíveis. Por isso, Levi-Strauss prefere incluí-los no mundo natural, regido por leis de causalidade e onde não há lugar para julgamentos morais. Então, bem, se alguém é picado por uma cobra, não se deve condenar a maldade do animal, mas a imprudência do homem.
Essa abordagem, que se pretende revolucionária, em nada difere da tradição européia de instrumentalização e desumanização das populações do Novo Mundo. Quem não é objeto de julgamentos tampouco pode ser sujeito de direitos, e tratar as ações de seres humanos em termos de relações causais é roubar-lhes a liberdade de escolha - juntamente com a responsabilidade que a acompanha. Essa mentalidade pode servir para um europeu lidar com as suas próprias contradições, mas não para fundamentar as relações entre culturas diferentes que precisam conviver em uma mesma comunidade política. Nesse caso, única solução viável é reconhecer liberdades e conferir direitos, mas para tanto é preciso aceitar a idéia de que sociedades e culturas se transformam (e, eventualmente, desaparecem) quando os homens fazem escolhas. Se, por causa disso, a Europa ficar sem matéria-prima para as suas revoluções, paciência!