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A História é uma moça tímida, alguém escreveu. Antes da invasão da Polônia e da descoberta do pacto germano-soviético, quem ousava criticar líderes populares (e democraticamente eleitos), como Hitler e Mussolini, que reconstruíam a economia e a auto-estima de países humilhados? Quanto tempo o Ocidente demorou para perceber que a Revolução Cultural não foi um Maio/68 Chinês, mas um expurgo deflagrado por Mao Tse-tung para aumentar seu poder pessoal? Dar sentido aos fatos e discernir os lados em conflito depende da lenta depuração do processo histórico. Só retroativamente a condescendência e a simpatia se mostram criminosas.
Há momentos, entretanto, em que a História se desvela, concentrando suas dimensões de tragédia e de farsa, e a crueza dos fatos permite que sejam interpretados em tempo real. Honduras vive hoje um desses momentos raros, e os acontecimentos trazem em si uma carga simbólica que permite descobrir-lhes o sentido. Manuel Zelaya, o latifundiário conservador que sofreu uma súbita epifania socialista, representa como ninguém a alma do bolivarianismo: essa mistura de marxismo barato e nacionalismo autoritário revela-se a ideologia de uma elite criolla que pretende governar nações como manda em suas fazendas e quartéis. O "golpe" que o depôs não é menos exemplar. Assim como Zelaya e Cháves, Isabelita Péron e Salvador Allende tomaram medidas autoritárias contra as quais as instituições democráticas não tinham defesas. Quando foram depostos, entretanto, seus países levaram décadas para libertar-se de seus libertadores. Em Honduras, ao contrário, os militares despacharam o presidente para o exterior e, ato contínuo, entregaram o poder ao Parlamento, que manteve inalterada a data das eleições. Por fim, talvez vejamos o resgate da democracia hondurenha abortado pela intervenção de um concerto de nações estrangeiras, enquanto possíveis aliados (como os Estados Unidos e a União Européia) estão ocupados demais com seus próprios problemas para posicionar-se como deveriam. A trama é tão cristalina que, se um ficcionista a escrevesse, seria acusado de simplismo.
Esses momentos em que a dinâmica da História coloca-se em evidência costumam ser também seus pontos de inflexão. Após invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, começou a derrocada da liderança soviética sobre os partidos comunistas do Ocidente, em um processo que culminaria na Glasnost. O massacre da Praça da Paz Celestial selou o destino do maoísmo como alternativa política. As pessoas diretamente envolvidas, entretanto, costumam pagar caro por serem protagonistas da História. O caso hondurenho apontava para um desfecho diferente, com a realização de eleições em novembro e a possibilidade de uma transição relativamente pacífica. Mas o governo brasileiro, ao patrocinar a volta de Zelaya ao país, mostra-se disposto a cobrar do povo de Honduras um preço alto por tentar decidir seu próprio destino.