segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Símbolos I

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Predestinação, Super-Homem e Revolução Cultural

"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas." - Borges, A Esfera de Pascal.

"History is the record of what human beings have been impelled to do by their ignorance and the enormous bumptiousness that makes them canonize their ignorance as political or religious dogma." - Huxley, Island. [A História é o registro do que os seres humanos foram impelidos a fazer por sua ignorância e da enorme teimosia que os faz canonizar essa ignorância em dogmas religiosos ou políticoas]

Huxley expõe, em Island, uma tese verdadeira e original (raramente vemos as duas coisas juntas): estabelece uma relação entre a doutrina da predestinação e chicotadas no traseiro, entremeadas por calvinismo, nazismo e maoísmo.

Explicitemos o que o Dr. McPhail, o improvável personagem do romance - médico de nome escocês nascido em um paraíso-na-terra do pacífico sul, homem de meia-idade adepto do sexo tântrico e do chá de cogumelos -- deixa apenas entrever:

Segundo a doutrina de Sto. Agostinho, revivida por Lutero e Calvino, o Todo-Poderoso é - e não poderia deixar de ser -- perfeitamente indiferente às nossas boas ações. Somos irremediavelmente corrompidos, mas Ele, em sua infinita misericórdia, salvou-nos - bem, pelo menos a alguns de nós. Como saber quem recebeu a graça? Por sinais externos de felicidade (a riqueza e a saúde, p. ex.), querem uns; para outros, mais sutis, pela fé: aquele que tem fé inabalável será salvo, aquele que será salvo tem inabalável fé em sua salvação. Ergo, sei que recebi a graça porque sei que recebi a graça. Quod erat demonstratum.

Essa engenhosa doutrina descreve o mundo como dividido em dois tipos de pessoa: os infalivelmente redimidos e os inexoravelmente corruptos. Então prescreve, muito razoavelmente, que os primeiros têm o dever moral de fustigar as nádegas dos últimos.

Agora, por que pensar a salvação em termos de indivíduos? E por que não substituir a deidade por alguma abstração mais ao gosto do tempo - digamos, a História? Assim, temos que a graça pode ungir um governante (Hegel e Voltaire, hehe), uma raça (Hitler), uma classe (Marx), uma vanguarda (Lênin) ou uma geração (O Mao da revolução cultural). Será apenas coincidência que todas essas predestinações têm sua origem remota para lá do Reno?

Mas o que todos esses ateus podem ter em comum com Calvino, Lutero e Sto. Agostinho? A inversão dos termos do julgamento moral típico (ou, segundo Nietzche, profundamente atípico): se eu normalmente diria que sou um homem bom porque faço o Bem, nossos reformadores sabem perfeitamente que, na verdade, faço coisas boas porque sou no fundo um bom sujeito. Daí a concluir que, já que sou assim tão bom, defino por minhas ações o Bem e o Mal -- e não posso ser julgado senão por meus próprios padrões -- é um pulo.

E as chicotadas no traseiro fecham o ciclo. Quem apanhou muito na infância tem duas saídas: ou o sujeito acreditará que a verdadeira liberdade consiste em obedecer a um pai abstrato brandindo eternamente um relho ameaçador (Hegel); ou então, como um adolescente metafísico, estabelecerá como dogma moral que, não importa o que aconteceça, estará sempre com a razão (Marx). Em qualquer caso, sentir-se-á impelido a a submeter as nadegas alheias àquilo que foi infligido às suas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um Oriente ao Oriente do Oriente

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ou Sobre Camelos e Mangabas
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Mangabeira Unger. Passei os olhos sobre algumas coisas que o sujeito escreveu. Sua tese central é a da sociedade como artefato: pretensa síntese dialética de marxismo e liberalismo, procura desvencilhar-se do determinismo do primeiro sem recair na ingenuidade contratualista do segundo; a sociedade pode ser construída como quisermos, sim, mas não podemos esquecer as estruturas... Subjacente a esse quase existencialismo político, há a crença na força telúrica do nosso ziriguidum e da nossa malemolência, que nos conferem o destino histórico de curar a neurastenia do ocidente - gostemos ou não.

A relativa ascenção política do mangabeirismo - que tem por avatares Ciro Gomes, aquele da nova hegemonia, e talvez o juiz DeSanctis - andava me preocupando bastante. O qualunquismo lulista é quase inóquo, mas essa auto-orientalização me parecia menos inofensiva: povos e nações que se crêem portadores do destino da humanidade costumam embarcar em aventuras desastrosas (sim, me refiro à Alemanha); quando essa crença não passa da concretização de anseios estrangeiros, pior ainda.

Borges dirimiu meus temores. Em uma conferência sobre a relação entre poesia gaúcha e poesia gauchesca, o argentino menciona um fato transcedental: não há camelos no alcorão. Inserido na realidade dos desertos do levante, Maomé não precisa retratá-la; o que há nela de pitoresco e definidor - os camelos - é para ele banal, cotidiano, indigno de nota. Não precisa esforçar-se para ser árabe porque é árabe.

Acho que a invenção da brasilidade remonta à Era Vargas. Quando o país iniciou sua transformação em uma sociedade industrial, passamos a não mais incorporar as tradições nacionais e regionais como as plantas dão frutos, com naturalidade e inconsciência. No exato instante em que começamos a desejar ser brasileiros, deixamos de sê-lo.

O próprio Mangabeira Unger é como que um símbolo disso. Árvore nativa por parte de mãe, anglo-saxão por parte de pai, seu nome já denota a condição de apátrida. Sendo americano sem perceber (e, por isso mesmo, de forma autêntica), esforça-se para criar uma identidade a partir da personificação de uma nacionalidade e de uma cultura; mas só consegue fazê-lo com aquele sotaque carregado, porque só viveu a brasilidade como representação mítica do estrangeiro, do exotique.

Nosso mangabeirismo - em sentido amplo, de afirmação de uma nacionalidade perdida - não deve, portanto, causar espécie. A profusão de mulatas mulatíssimas e seminuas, de índios pintados para a guerra, de samba e futebol, essa celebração do exotismo em todas as nossas manifestações culturais - tudo isso não passa de uma tentativa de reviver como farsa o que foi nossa brasilidade trágica.