.
Predestinação, Super-Homem e Revolução Cultural
"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas." - Borges, A Esfera de Pascal.
"History is the record of what human beings have been impelled to do by their ignorance and the enormous bumptiousness that makes them canonize their ignorance as political or religious dogma." - Huxley, Island. [A História é o registro do que os seres humanos foram impelidos a fazer por sua ignorância e da enorme teimosia que os faz canonizar essa ignorância em dogmas religiosos ou políticoas]
Huxley expõe, em Island, uma tese verdadeira e original (raramente vemos as duas coisas juntas): estabelece uma relação entre a doutrina da predestinação e chicotadas no traseiro, entremeadas por calvinismo, nazismo e maoísmo.
Explicitemos o que o Dr. McPhail, o improvável personagem do romance - médico de nome escocês nascido em um paraíso-na-terra do pacífico sul, homem de meia-idade adepto do sexo tântrico e do chá de cogumelos -- deixa apenas entrever:
Segundo a doutrina de Sto. Agostinho, revivida por Lutero e Calvino, o Todo-Poderoso é - e não poderia deixar de ser -- perfeitamente indiferente às nossas boas ações. Somos irremediavelmente corrompidos, mas Ele, em sua infinita misericórdia, salvou-nos - bem, pelo menos a alguns de nós. Como saber quem recebeu a graça? Por sinais externos de felicidade (a riqueza e a saúde, p. ex.), querem uns; para outros, mais sutis, pela fé: aquele que tem fé inabalável será salvo, aquele que será salvo tem inabalável fé em sua salvação. Ergo, sei que recebi a graça porque sei que recebi a graça. Quod erat demonstratum.
Essa engenhosa doutrina descreve o mundo como dividido em dois tipos de pessoa: os infalivelmente redimidos e os inexoravelmente corruptos. Então prescreve, muito razoavelmente, que os primeiros têm o dever moral de fustigar as nádegas dos últimos.
Agora, por que pensar a salvação em termos de indivíduos? E por que não substituir a deidade por alguma abstração mais ao gosto do tempo - digamos, a História? Assim, temos que a graça pode ungir um governante (Hegel e Voltaire, hehe), uma raça (Hitler), uma classe (Marx), uma vanguarda (Lênin) ou uma geração (O Mao da revolução cultural). Será apenas coincidência que todas essas predestinações têm sua origem remota para lá do Reno?
Mas o que todos esses ateus podem ter em comum com Calvino, Lutero e Sto. Agostinho? A inversão dos termos do julgamento moral típico (ou, segundo Nietzche, profundamente atípico): se eu normalmente diria que sou um homem bom porque faço o Bem, nossos reformadores sabem perfeitamente que, na verdade, faço coisas boas porque sou no fundo um bom sujeito. Daí a concluir que, já que sou assim tão bom, defino por minhas ações o Bem e o Mal -- e não posso ser julgado senão por meus próprios padrões -- é um pulo.
E as chicotadas no traseiro fecham o ciclo. Quem apanhou muito na infância tem duas saídas: ou o sujeito acreditará que a verdadeira liberdade consiste em obedecer a um pai abstrato brandindo eternamente um relho ameaçador (Hegel); ou então, como um adolescente metafísico, estabelecerá como dogma moral que, não importa o que aconteceça, estará sempre com a razão (Marx). Em qualquer caso, sentir-se-á impelido a a submeter as nadegas alheias àquilo que foi infligido às suas.
Predestinação, Super-Homem e Revolução Cultural
"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas." - Borges, A Esfera de Pascal.
"History is the record of what human beings have been impelled to do by their ignorance and the enormous bumptiousness that makes them canonize their ignorance as political or religious dogma." - Huxley, Island. [A História é o registro do que os seres humanos foram impelidos a fazer por sua ignorância e da enorme teimosia que os faz canonizar essa ignorância em dogmas religiosos ou políticoas]
Huxley expõe, em Island, uma tese verdadeira e original (raramente vemos as duas coisas juntas): estabelece uma relação entre a doutrina da predestinação e chicotadas no traseiro, entremeadas por calvinismo, nazismo e maoísmo.
Explicitemos o que o Dr. McPhail, o improvável personagem do romance - médico de nome escocês nascido em um paraíso-na-terra do pacífico sul, homem de meia-idade adepto do sexo tântrico e do chá de cogumelos -- deixa apenas entrever:
Segundo a doutrina de Sto. Agostinho, revivida por Lutero e Calvino, o Todo-Poderoso é - e não poderia deixar de ser -- perfeitamente indiferente às nossas boas ações. Somos irremediavelmente corrompidos, mas Ele, em sua infinita misericórdia, salvou-nos - bem, pelo menos a alguns de nós. Como saber quem recebeu a graça? Por sinais externos de felicidade (a riqueza e a saúde, p. ex.), querem uns; para outros, mais sutis, pela fé: aquele que tem fé inabalável será salvo, aquele que será salvo tem inabalável fé em sua salvação. Ergo, sei que recebi a graça porque sei que recebi a graça. Quod erat demonstratum.
Essa engenhosa doutrina descreve o mundo como dividido em dois tipos de pessoa: os infalivelmente redimidos e os inexoravelmente corruptos. Então prescreve, muito razoavelmente, que os primeiros têm o dever moral de fustigar as nádegas dos últimos.
Agora, por que pensar a salvação em termos de indivíduos? E por que não substituir a deidade por alguma abstração mais ao gosto do tempo - digamos, a História? Assim, temos que a graça pode ungir um governante (Hegel e Voltaire, hehe), uma raça (Hitler), uma classe (Marx), uma vanguarda (Lênin) ou uma geração (O Mao da revolução cultural). Será apenas coincidência que todas essas predestinações têm sua origem remota para lá do Reno?
Mas o que todos esses ateus podem ter em comum com Calvino, Lutero e Sto. Agostinho? A inversão dos termos do julgamento moral típico (ou, segundo Nietzche, profundamente atípico): se eu normalmente diria que sou um homem bom porque faço o Bem, nossos reformadores sabem perfeitamente que, na verdade, faço coisas boas porque sou no fundo um bom sujeito. Daí a concluir que, já que sou assim tão bom, defino por minhas ações o Bem e o Mal -- e não posso ser julgado senão por meus próprios padrões -- é um pulo.
E as chicotadas no traseiro fecham o ciclo. Quem apanhou muito na infância tem duas saídas: ou o sujeito acreditará que a verdadeira liberdade consiste em obedecer a um pai abstrato brandindo eternamente um relho ameaçador (Hegel); ou então, como um adolescente metafísico, estabelecerá como dogma moral que, não importa o que aconteceça, estará sempre com a razão (Marx). Em qualquer caso, sentir-se-á impelido a a submeter as nadegas alheias àquilo que foi infligido às suas.