"O brasileiro é um feriado" - Nelson Rodrigues
O caso Isabela Nardoni. Naturalmente, já há quem se ocupe em noticiar a notícia e comentar o comentário. Há as indefectíveis acusações de linchamento midiático, comparando a cobertura "histérica" do caso Nardoni a outras em que a mídia também pecou pela falta de serenidade e "isenção de ânimo", como a do mensalão, da epidemia de dengue, da queda do avião da TAM... Outros acham tudo muito natural: a revolta provocada pelo assassinato só provaria que ainda temos um resquício de humanidade.
Não gosto desse negócio de criticar a mídia. Em primeiro lugar, porque implica cair na imbecilidade de crer que existe "A Mídia", categoria ontológica que vai além dos elementos que a compõem. Além disso, fica sempre implícito um perigoso "alguém tem que fazer alguma coisa". É evidente que os veículos de comunicação não são inimputáveis. A análise e acrítica também podem, devem ser objeto de análise e de crítica. Mas, na hora de propor o que quer que seja, explícita ou implicitamente, sigo Tocqueville: os males da liberdade se combatem com mais liberdade.
Mas manifestar-se pela normalidade da coisa toda é ignorar os detalhes - onde, como sabem, está o diabo. É nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, que transparece o volksgeist carnavalesco que perpassa o episódio todo. Nossa "alma de feriado" não deixa de manifestar-se nem mesmo nas piores tragédias. Pelo contrário: as multidões sibilantes amam o grotesco.
É evidente que tudo isso faz parte da nossa normalidade. A atmosfera festiva, de feriado em dia-de-semana, que paira sobre a multidão que vaia, apupa e bate palmas enquanto grita, num coro cadenciado de torcida organizada, "A-SSA-SSI-NO! A-SSA-SSI-NO!" ou "JUS-TI-ÇA! JUS-TI-ÇA!" - isso já era de se esperar. Mas há algo de novo nisso tudo. Ou, talvez, algo que já estava caindo de maturo, mas encontrou terreno fértil para frutificar.
Tive minha primeira sensação de estranhamento quando a televisão noticiou, pouco após o fato: a mãe de Isabela respondeu que poderá, sim, criar uma ONG com o nome da filha - e, se respondeu, é porque alguém perguntou. Primeiro, há um desconforto lógico: faz sentido criar uma ONG para evitar a ocorrência de casos semelhantes, homenageando alguém que morreu, digamos, em um acidente de trânsito, em um assalto, por causa de uma bala perdida. Não sei se me entendem: o caso de Isabela Nardoni está nos noticiários e causa comoção justamente porque é excepcional, incomum, inusual.Será uma ONG dedicada a prevenir o assassinato de enteadas por madrastas? Para estudar o complexo de electra? Para exigir telas de proteção à prova de tesoura?
Depois, há um mal-estar, um écoeurement estético: agora, diante da morte de um ente querido, a primeira coisa que se pensa é em criar uma ONG? Segue com a mãe recebendo as condolências de Zezé di Camargo e Luciano, "muita força, viu?"; abraçando Xuxa e Sacha, "o Brasil inteiro está torcendo por você"; participando da missa-show do padre Marcelo Rossi - e tudo isso sem uma lágrima a correr no rosto, sem exibir a palidez e as olheiras que se espera da mãe enlutada. Catarse: as luzes, o som, o espetáculo a deixaram em estado de catarse. Essa é a hipótese mais branda.
Pior é considerar que se eliminou o sentimento do privado. Não há mais alegrias privadas, sofrimentos privados, vida privada. Está banida a solidão. A indignação faz passeadas, o luto funda ONGs e a tristeza é televisionada ao lado de celebridades.
Não, não segue o lugar-comum de que isso é culpa da sociedade do espetáculo, da mídia de massa ou o que quer que seja. No Brasil, esse fenômeno tem raízes bem particulares e identificáveis. A partir da redemocratização, começou a ser vendida a idéia de que ter uma opinião, expressar-se, ser ouvido - de que tudo isso consitui um direito - e um direito a ser exercido coletivamente. Vencida a ditadura militar, findo o tempo das grandes "marchas", restou a embriaguez da passeata, a sensação de que é legítimo e razoável fazer um ajuntamento carnavalesco para protestar contra balas perdidas, engarrafamentos, eventos climáticos ou homicídios em família. Vox populi vox dei: qualquer causa torna-se legítima se vociferada por uma turba barulhenta.
Vai demorar um bocado para nos lembrarmos de algo que nunca aprendemos direito: só o indivíduo vive, pensa e age; e só a solidão humaniza.
O caso Isabela Nardoni. Naturalmente, já há quem se ocupe em noticiar a notícia e comentar o comentário. Há as indefectíveis acusações de linchamento midiático, comparando a cobertura "histérica" do caso Nardoni a outras em que a mídia também pecou pela falta de serenidade e "isenção de ânimo", como a do mensalão, da epidemia de dengue, da queda do avião da TAM... Outros acham tudo muito natural: a revolta provocada pelo assassinato só provaria que ainda temos um resquício de humanidade.
Não gosto desse negócio de criticar a mídia. Em primeiro lugar, porque implica cair na imbecilidade de crer que existe "A Mídia", categoria ontológica que vai além dos elementos que a compõem. Além disso, fica sempre implícito um perigoso "alguém tem que fazer alguma coisa". É evidente que os veículos de comunicação não são inimputáveis. A análise e acrítica também podem, devem ser objeto de análise e de crítica. Mas, na hora de propor o que quer que seja, explícita ou implicitamente, sigo Tocqueville: os males da liberdade se combatem com mais liberdade.
Mas manifestar-se pela normalidade da coisa toda é ignorar os detalhes - onde, como sabem, está o diabo. É nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, que transparece o volksgeist carnavalesco que perpassa o episódio todo. Nossa "alma de feriado" não deixa de manifestar-se nem mesmo nas piores tragédias. Pelo contrário: as multidões sibilantes amam o grotesco.
É evidente que tudo isso faz parte da nossa normalidade. A atmosfera festiva, de feriado em dia-de-semana, que paira sobre a multidão que vaia, apupa e bate palmas enquanto grita, num coro cadenciado de torcida organizada, "A-SSA-SSI-NO! A-SSA-SSI-NO!" ou "JUS-TI-ÇA! JUS-TI-ÇA!" - isso já era de se esperar. Mas há algo de novo nisso tudo. Ou, talvez, algo que já estava caindo de maturo, mas encontrou terreno fértil para frutificar.
Tive minha primeira sensação de estranhamento quando a televisão noticiou, pouco após o fato: a mãe de Isabela respondeu que poderá, sim, criar uma ONG com o nome da filha - e, se respondeu, é porque alguém perguntou. Primeiro, há um desconforto lógico: faz sentido criar uma ONG para evitar a ocorrência de casos semelhantes, homenageando alguém que morreu, digamos, em um acidente de trânsito, em um assalto, por causa de uma bala perdida. Não sei se me entendem: o caso de Isabela Nardoni está nos noticiários e causa comoção justamente porque é excepcional, incomum, inusual.Será uma ONG dedicada a prevenir o assassinato de enteadas por madrastas? Para estudar o complexo de electra? Para exigir telas de proteção à prova de tesoura?
Depois, há um mal-estar, um écoeurement estético: agora, diante da morte de um ente querido, a primeira coisa que se pensa é em criar uma ONG? Segue com a mãe recebendo as condolências de Zezé di Camargo e Luciano, "muita força, viu?"; abraçando Xuxa e Sacha, "o Brasil inteiro está torcendo por você"; participando da missa-show do padre Marcelo Rossi - e tudo isso sem uma lágrima a correr no rosto, sem exibir a palidez e as olheiras que se espera da mãe enlutada. Catarse: as luzes, o som, o espetáculo a deixaram em estado de catarse. Essa é a hipótese mais branda.
Pior é considerar que se eliminou o sentimento do privado. Não há mais alegrias privadas, sofrimentos privados, vida privada. Está banida a solidão. A indignação faz passeadas, o luto funda ONGs e a tristeza é televisionada ao lado de celebridades.
Não, não segue o lugar-comum de que isso é culpa da sociedade do espetáculo, da mídia de massa ou o que quer que seja. No Brasil, esse fenômeno tem raízes bem particulares e identificáveis. A partir da redemocratização, começou a ser vendida a idéia de que ter uma opinião, expressar-se, ser ouvido - de que tudo isso consitui um direito - e um direito a ser exercido coletivamente. Vencida a ditadura militar, findo o tempo das grandes "marchas", restou a embriaguez da passeata, a sensação de que é legítimo e razoável fazer um ajuntamento carnavalesco para protestar contra balas perdidas, engarrafamentos, eventos climáticos ou homicídios em família. Vox populi vox dei: qualquer causa torna-se legítima se vociferada por uma turba barulhenta.
Vai demorar um bocado para nos lembrarmos de algo que nunca aprendemos direito: só o indivíduo vive, pensa e age; e só a solidão humaniza.